Problem space vs. solution space como analogia à dificuldade de converter negócio em tecnologia
Por que sempre parece que negócio "quer tudo" e tecnologia "não pode nada"? Uma tentativa de entender a questão por meio das características e diferenças que há entre espaço do problema e da solução
Há um tema “caindo de maduro” e pedindo para ser tratado já faz algumas newsletters. É um pano de fundo do texto sobre domínios simples e complexos, do que trata sobre perfeição em produto e do anterior, em que refletimos sobre discovery.
Deu as caras de modo mais explícito em uma passagem do artigo sobre venture capital, quando nos referimos ao:
“[...] trade-off inevitável entre a ambiguidade, a imprecisão e a urgência, que sopram das bandas do negócio, contra o rigor, a precisão e as restrições, que a tecnologia naturalmente impõe.” — Venture Capital e o ritmo de Produto e Design, 2021.
Ter encarado discovery ajuda a entrar com mais bagagem nessa discussão: a da permanente dificuldade em relacionar a incerteza, a ambiguidade e a imprecisão que existem no âmbito de negócio (principalmente os que lidam com a inovação) com a certeza, a precisão e as restrições que são inerentes à tecnologia.
Em um panorama mais amplo, podemos substituir negócios por ciência, filosofia ou arte que a dificuldade será a mesma ou muito parecida.
A “bagagem” que a discussão sobre discovery nos dá para encarar essa dicotomia é a relação problem space vs. solution space (espaço do problema vs. espaço da solução), que foi apenas mencionada no texto anterior.
Por que uma discussão tão “vaga” deveria interessar a atuais ou futuros product managers e UX/UI/product designers?
Porque ambos viverão transitando entre um domínio e outro o tempo todo, principalmente se pretendem impactar negócios e mercados em que atuam e não ficar restritos a zonas de conforto de sua função.
Mais perceptivelmente, ambos se verão sempre entre negócio, com sua perspicácia, visão e vislumbres de oportunidades, que parece “querer tudo”, versus tecnologia, com suas restrições, complexidades e cálculo de riscos, que parece “não poder nada”.
Quando nos referimos a dificuldades, não se trata necessariamente de conflitos de comunicação e alinhamento entre pessoas de negócios e pessoas de tecnologia (desenvolvedores de software, devops, data scientists etc.), como se PMs e designers estivessem no meio (ou, algumas vezes, fossem a corda) de um cabo de guerra.
Até porque, por padrão, parece que tendemos todos a funcionar muito mais no espaço da solução do que no do problema, talvez por questões cognitivas evolutivas ainda não estudadas.
Trata-se, sim, de dificuldades inerentes a domínios de naturezas diferentes, o que torna não trivial transitar de um a outro e vice-versa.
Vamos destrinchar essa relação entre problema e solução — como uma analogia à dificuldade de relacionamento entre o domínio do negócio e o domínio da tecnologia — para tentar tornar o quadro geral mais claro. Pode ser que precisemos burilar a ideia em outros textos futuros.
Muitos dos leitores da newsletter já devem ter visto o esquema visual acima. Chama-se Double Diamond. É um artefato popular e importante de Design Thinking, formulado entre 2003 e 2005 pela British Design Council, antes do Design Thinking ser o que se tornaria com a popularização conduzida pela IDEO.
Há muitas variações do esquema, a grande maioria no âmbito do Design. Algumas substituem os quatro momentos (descobrir, definir, desenvolver e entregar, como formulados originalmente) por “pesquisar, definir, idear, validar”. Ou por “pesquisa, insights, ideação, prototipação”. Cada um adapta à sua maneira.
O que nos interessa é que o artefato é bastante utilizado como representação do espaço do problema e do espaço da solução. Ele tem prestado uma ótima contribuição para que pensemos muito mais sobre essa relação “problema vs. solução” e suas implicações.
É um artefato útil para visualizarmos algo difícil de intuir. No losango à esquerda, estão os momentos de exploração/descoberta e de ideação/definição do problema (o espaço deste). No losango da direita, os momentos do desenvolvimento/construção e da entrega/produção da solução (o espaço desta).
De uma forma mais bruta, sem transições graduais, também poderíamos representar o espaço do problema como uma “coisa” ou um “espaço” mesmo, algo como o vácuo sideral, ilimitado, infinito e amorfo, onde há risco e oportunidade “puros”.
Já o espaço da solução seria o contrário disso: o delimitado, o finito, aquilo que é dotado de forma — no extremo, um “objeto” geométrico perfeito, que sabemos que só existe no mundo das ideias.
O esquema a seguir tenta ilustrar essas características. À esquerda, temos o espaço do problema como o mundo do possível e do incerto. À direita, temos o espaço da solução como aquilo que reside dentro de linhas delimitadas, em blocos de construção, o mundo da busca infinitesimal por certeza.
Obviamente, tudo isso são metáforas que nos ajudam a expandir o raciocínio. Pode ser editado e modificado livremente. Não há certo ou errado e leva em conta uma boa dose de imaginação.
Pois bem. Tudo o que chamamos de negócio, na prática, diz respeito a riscos e oportunidades, a incerteza. Isso é muito presente na inovação, mas também ocorre em negócios tradicionais que “inovam” dentro de alguns limites de seus produtos e serviços ou seus mercados.
Esqueçamos por um momento negócios como estereótipos: a sede da empresa, pessoas engravatadas, todas as outras pessoas que não são de produto, design ou desenvolvimento e outros lugares-comuns.
Pensemos em negócios como, basicamente, aquilo que emerge de relações potenciais ou realizadas de demanda e oferta entre seres humanos. Notem o “potenciais” e “realizadas”.
Quase tudo o que se fala em inovação tem a ver com esse “potenciais”. Quando falamos em exploração, em discovery, em problem space, em “amar o problema” e outros jargões, estamos querendo dizer o ato de vasculhar naquele espaço infinito, ilimitado e amorfo das possibilidades, tentando capturar sinais de relações potenciais de oferta e demanda.
Ao que tudo indica, há problemas infinitos e, portanto, possibilidades de negócios infinitos. Não é como se houvesse um espaço com n problemas já pré-determinados, só aguardando serem capturados por meio de alguma metodologia.
Podemos “criar” problemas. Novos problemas também emergem, sem nossa intenção direta, com o tempo, em decorrência de diversos fatores, sendo o principal deles o nosso comportamento.
Na verdade, há soluções para um determinado problema que se tornam fonte de outros inúmeros problemas. Vide-se carros, que resolvem um problema (transporte rápido) e causam vários outros (acidentes, congestionamentos, poluição).
Tecnologia, por outro lado — e não estamos falando apenas de tecnologia da informação, mas de qualquer coisa construída artificialmente pelo ser humano — é sempre uma busca por precisão, delimitação, certeza.
Muitos dos produtos e serviços construídos, que são manifestações da tecnologia, são maneiras de tornar aquelas relações de demanda e oferta realizadas. Viabilizam negócios, criam mercados ou, ao contrário, só servem para ocupar espaço no mundo, isso quando não causam mais problemas, como dissemos.
Ocorre que nesse processo de transitar do espaço do problema ao espaço da solução nunca há uma correspondência perfeita. É impossível. É como uma tradução que não tem notas de rodapé para explicações adicionais.
Tomando de volta o Double Diamond, é como se houvesse um “gap” entre o primeiro e o segundo losango. Ou, para ainda mantê-los conectados, como se houvesse um resistor que converte energia em calor (com consequentes dissipações, perdas) naquela junção do espaço do problema com o espaço da solução.
Em resumo, é como se sempre faltasse contemplar mais do problema na forma da solução. Como se a solução nunca contivesse todo o problema.
E é. Por ser amorfo, ilimitado e infinito, não há como pegar um “pedaço” do espaço do problema e convertê-lo em solução delimitada e finita. Demanda e oferta sempre conterão assimetrias.
No fundo, são necessárias expertise, intuição, criatividade (aliadas a dados e evidências, é claro) para que uma solução atenda um problema.
E muito do que chamamos de “solução perfeita” ou quase perfeita, no sentido de que atende uma gama de usuários, na verdade é uma aproximação da solução para com o problema.
Sempre sobrará um incômodo não dito por determinados usuários, uma fricção difícil de colocar em palavras, uma melhoria que, por estarem ocupados com outras coisas, usuários não se darão ao luxo de tornar mais claras.
Sempre haverá, também, mais espaço do problema surgindo a partir das restrições impostas por uma solução.
Acontece com qualquer um e com uma das principais construções nossas: a linguagem. Há incômodos, estresses, frustrações ou alegrias, sensações de conquista etc., que não conseguimos colocar em termos precisos. Tentamos analogias, metáforas, rodeamos em torno de explicações, mas nunca atingimos o ponto.
O que existe, então, são soluções “boas o suficiente”, no máximo. Mas que podem ser melhoradas incrementalmente, sejam por meio de refinamentos, sejam por meio de transformações, para tentar uma correspondência maior com aquilo que vai se descobrindo lá no espaço do problema, porém com a noção de que nunca será satisfeito e pode perder correspondência, principalmente se não pensarmos no espaço do problema de forma contínua.
Agora, é ruim que não haja essa correspondência entre problema e solução? Que seja sempre uma tradução?
É claro que não. É por causa dessa relação sempre incompleta que temos trabalho para fazer pelo resto de nossos dias, se tivermos capacidade e estivermos dispostos. É por isso que a inovação é uma fonte inesgotável de geração de valor.
Voltando à relação entre negócio e tecnologia, agora é possível ver porque nem sempre ambas casam sem conflitos.
É porque o negócio, principalmente na economia da inovação, vive muito mais vasculhando e lidando com oportunidades em meio a incertezas, tentando investidas, apostando, com medo de não fazer nada. Quer maximizar as possibilidades, imaginando quantas devem existir e estão sendo perdidas lá fora.
E é porque a tecnologia tem de viver preocupada com o quadrado, a precisão, a garantia de mais e mais certeza, para que os artefatos e construtos continuem funcionando e cumprindo sua função. Quer minimizar possibilidades, com receio de fazer algo, porque todas significam complexidades e riscos.
Normalmente, as maiores dificuldades ocorrem quando, agora sim:
1. pessoas com mentalidade de negócio não compreendem a natureza da tecnologia, em especial suas restrições, e querem ver o que captam da incerteza que há no espaço do problema (oportunidades, mais ou menos apoiadas por evidências) espelhadas na precisão da tecnologia;
2. pessoas com mentalidade de tecnologia não compreendem a natureza do negócio, em especial seu caráter de exploração, de tentar, de apostar, de criar e fazer algo acontecer, e só enxergam riscos de implementação e de manutenção futuros, isto é, só pensam em como lapidar e cultivar certezas.
Como vimos, há sempre uma necessidade de tradução nesse processo. E quando falamos de mentalidade de negócio ou de tecnologia, qualquer pessoa pode pender para uma ou para outra, inclusive PMs e designers.
Parece que uma forma de lidar com isso não é essa separação entre mentalidade de negócio e mentalidade de tecnologia, entre espaço do problema e espaço da solução. É entender, transitar e conseguir fazer essa transposição entre os dois mundos.
Por mais que a natureza dos domínios seja imutável por princípio, seres humanos são maleáveis e adaptáveis e podem aprender uns com os outros sobre esses domínios.
É interessante pessoas com mentalidade de solução e de tecnologia serem levadas a explorarem o espaço do problema e a dinâmica do negócio. E o mesmo ser feito na direção contrária com pessoas de negócio.
Um aprendizado necessário ao primeiro grupo, nesse exercício, é: por mais lógicos, racionais e analíticos (quebrar o todo em partes) que formos, temos de abrir mão de achar que há fórmulas (frameworks e modelos mentais entram aqui) que se apliquem de pronto ao espaço do problema, como se ele tivesse determinismos, mecanismos ocultos, que bastam ser deduzidos.
É preciso perspicácia, intuição e criatividade para captar os sinais emitidos desse espaço. Não há leis ou padrões.
Ao segundo grupo, um aprendizado também necessário é: por mais criativos, intuitivos e sintéticos (juntar partes no todo) e, por isso mesmo, imprecisos que formos, temos de entender que o espaço da solução requer estrutura, lógica, sustentação, continuidade, e que não há como aplicar palpites, suposições ou “mágica” nesse domínio.
Talvez isso torne mais claro por que criamos indicadores como OKRs ou a North Star Metric. Por que contamos toda uma história sobre grande visão, que é desdobrada em estratégia e depois em tática. Por que nunca parece que temos a noção completa do que começa lá no negócio e se concretiza em forma de tecnologia, tendo sempre de haver mais reduções e resumos no meio do caminho.
No fundo, estamos sempre traduzindo algo captado do potencial que há em lado do espectro (problema) para tentar aproximá-lo com o que ganha forma, concretude, é realizado, do outro lado desse mesmo espectro (solução).
A questão é que o mundo tem ficado mais complexo e, por bastante tempo, acreditávamos que deveríamos viver nas caixas estanques de nossas especialidades para lidar com isso.
Mais recentemente é que nos abrimos à necessidade de sermos mais generalistas e conseguir transitar em âmbitos bem diferentes (as tantas representações de perfis de carreira demonstram isso).
Vale lembrar que por muito tempo, o mundo funcionou muito mais baseado na tradição, no previsível e se agarrou a algumas poucas certezas. A cultura da inovação e da disrupção é praticamente uma criança e ainda não sabemos como lidar com muitos aspectos dela.
Talvez reste nos habituarmos e aprender a conviver com o desconforto que essa necessidade de tradução difícil entre problem space e solution space gera. Talvez devamos pensar mais sobre o assunto para encontrar melhores enquadramentos e tratamentos à questão.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.
Texto excelente, mais uma vez. Uma sugestão seria torná-los mais didáticos ou talvez com uma linguagem mais leve...por mais que o assunto me interesse bastante, as vezes fica um pouco maçante.
Apenas uma sugestão :)