Tentativa e erro em domínios simples e complexos
Nossa relação com “erro”, a Matriz Stacey e reflexões sobre tentar e errar desde territórios “conhecidos-conhecidos” até aqueles “desconhecidos-desconhecidos”
Uma historinha sobre como um hype se dissemina. Um ou alguns grandes empreendedores, que também são influenciadores, decretam, por experiência própria ou outras influências, que a nova ordem é algo diferente do que se pratica no mercado. Por exemplo, a ordem agora é “tentar e não ter medo de errar”.
O marketing trata de replicar a mensagem ad infinitum. Outros micro influenciadores embarcam na onda e replicam a tese a empreendedores, empresários, gestores e entusiastas um tanto perdidos no oceano de informações. Repetem à exaustão que “sem tentar e errar, você e sua empresa serão engolidos pela competição darwiniana de nosso tempo”.
O mantra “tente, erre e tenha sucesso” entra sorrateiramente numa organização. Mais dia menos dia, há um gerente cobrando que colaboradores estejam abertos a tentar e errar. Depois a comunicação interna da empresa é inundada com mensagens motivacionais semelhantes. O que importa é o hype, afinal. Aos poucos, a nova “verdade” já se infiltrou no procedimentos operacionais.
Até que alguém, no intuito de tentar e errar, altere um código crítico em produção, lance (deixe vazar) algo estratégico e tenha-se de rever o mantra ou, na pior das hipóteses, sair-se à “caça às bruxas” (culpados). Imagine se fosse o colega do jurídico inventando de transpor a nova “verdade” para interpretar a lei. Ou a funcionária da contadoria querendo inovar em declarações ao fisco. Invertendo toda a situação, pode-se imaginar alguém julgando outro como “conservador” ou “pouco inovador”, por não compreender suas atividades.
Moral da historinha: ninguém entendeu nada sobre tentativa e erro e saiu aplicando o conceito na avidez da moda, de forma irrefletida e sem entender contexto.
Exageros e simplificações à parte, a cultura de tentativa e erro inundou o mundo da tecnologia e dos negócios nas últimas décadas e ganhou holofotes com métodos como o lean startup. É o mindset para descoberta, exploração e melhoria contínua, seja de produtos, serviços, processos ou modelos de negócio. Porém, por ser justamente isso, uma mentalidade e não um guia passo-a-passo, nem sempre é claramente compreendido e fácil de aplicar, podendo levar a imprudências onde tentar e errar não cabe ou a conservadorismo onde é a prática a ser adotada.
O texto pretende refletir sobre essa mentalidade de tentativa e erro e ajudar a pensar sobre sua prática em domínios simples e complexos, ou, de outro modo: como lidamos com erros de operação, onde estamos no “conhecido conhecido”, versus erros de exploração, onde, não raro, encontramo-nos com “desconhecidos desconhecidos”1.
Palavrinha com sabor ruim
No mundo supremo da precisão, também conhecido como Matemática, erro pode ser entendido como a diferença entre um valor verdadeiro e uma estimativa ou arredondamento. Uma distância entre duas medidas.
Em termos morais, à primeira vista e ao sabor do senso comum, “erro” também se parece com isso (algo que se distancia de um padrão dado ou acordado), mas com um enorme peso de algo “ruim”, a ser evitado.
Se o erro for cometido por um humano, pode-se falar em dolo, quando há intenção de cometê-lo, ou culpa, quando ocorre por negligência (deixar de fazer), imperícia (não saber fazer) ou imprudência (fazer sem cautela e observância a boas práticas). Se decorre da natureza, é comum associá-lo a “acidente”.
Em inglês, onde a precisão de alguns termos é maior do que no português, há duas palavras bastante usadas para se referir a erro: error, mais associado com acidente ou falha técnica, algo mais “aceitável” ou “inevitável”, digamos, e mistake, mais associado com engano ou equívoco humano, algo “inaceitável” e, portanto, “evitável”. Tanto que “tentativa e erro” é "trial and error”. “Mistake” não deixa de ter um certo sabor de “burrice” (palavra bem mais amarga que “erro”).
Talvez “tentativa e erro” fosse melhor compreendida se especificada em termos de “tentativa e ajuste” e “tentativa e fracasso”. Tentou montar um carrinho de madeira, mas uma das rodas saiu oval? Produza-se outra roda. Tentativa e ajuste. Apostou todo o patrimônio no pôquer e perdeu? Tentativa e fracasso. Mas como a simplificação gera eficiência cognitiva, “tentativa e erro” serve para ambos.
Muito de nossa noção primária de erro, no Ocidente, provavelmente decorre da noção de pecado que a religião carrega desde a Idade Média e dos mecanismos econômicos nascidos com a Modernidade, que demandou um “subordinar insubordinados” — ajustar todos a um ou a alguns padrões culturais —, primeiro na agricultura (escravidão), depois por meio de um aparato disciplinar crescente no mundo urbano (que Foucault diria que vai do exército a escolas, de hospitais a fábricas e prisões).
É claro que vale um olhar sem julgamentos a esses aspectos. Tais mecanismos têm ou tiveram seus propósitos e serventias, muito provavelmente não foram planejados como um grande complô para moldar ao mundo, mas aconteceram naturalmente, aqui e ali, como reprodução de cultura, até formar um sistema que se perpetua, e que provavelmente tinham intuito de pôr ordem nas relações humanas, permitir a vida em comunidade, afastar a violência e a barbárie.
Mais próximo das gerações atuais, a educação e o trabalho formais têm grande peso em nossa compreensão do erro e na forma como lidamos com isso. Por décadas, o sistema escolar foi baseado em disciplina (até não muito tempo, com castigos físicos), na noção de fracasso ao reprovar de ano e de ter que acertar sempre, seja em provas, exercícios ou práticas em sala de aula.
No mundo do trabalho industrial, a lógica da linha de produção fordista e taylorista não deixava espaço para falhas. Erros eram puníveis. Uma estrutura de hierarquia, comando e controle era necessária para combatê-los. Novamente, sem julgamentos: formas que a Modernidade encontrou de “civilizar”, “urbanizar”, formar mão-de-obra (e também exércitos e nações, de onde herdamos muito da cultura corporativa).
Isto nos diz bastante sobre como encaramos e lidamos com erros, atualmente. Acontece, porém, que com a evolução do sistema econômico e social, descobrimos a complexidade, a incerteza, que o mundo não é tão óbvio e determinístico como ingenuamente acreditávamos e, de repente, a evitação do erro mostrou-se, ela própria, uma fonte de erros. O que fazer? Chegamos, então, a uma nova necessidade de entendimento: de que há erros e erros.
Situando domínios
A “Matriz Stacey”, criada por Ralph Stacey (ele a abandonou depois), usada em tomada de decisão, gestão de projetos e times e bastante associada ao Agile, permite categorizar sistemas ou eventos em quatro grandes domínios: simples, complicado, complexo e caótico.
Versões derivadas podem renomear alguns termos (no original, “caótico” é citado como “anarquia”, por exemplo) e ter desenho diferente. Aqui há praticamente um tutorial sobre a versão original. Mas, para o que pretendemos, a ideia central é suficiente.
O modelo ajuda a entender onde “tentativa e erro” é benéfica (às vezes, o único caminho disponível) e onde pode ser imprudente (levar à repetição de erros conhecidos). Para nos situarmos:
Simples: é o domínio dos “conhecidos conhecidos”, onde existem regras em vigor, a situação é estável e a relação causa-efeito é clara (fazer X causa Y). O padeiro que assa pães em uma padaria de bairro opera nesse domínio. Na tecnologia e inovação, um vendedor que opera vendas simples, um customer success ou um analista de suporte de TI estão na maioria das vezes aqui, cumprindo operações.
Complicado: é o domínio dos “desconhecidos conhecidos”, há várias respostas possíveis, mas nada que um processo racional realizado com conhecimento técnico não possa destrinchar. A construção de um shopping center entra aqui, por exemplo. Há uma série de estudos arquitetônicos, de engenharia, topologia, de drenagem etc. a serem feitos, além de eventuais adaptações na execução do projeto, mas uma vez conhecidas estas variáveis, a edificação pode ser erguida. A implantação de um sistema ou metodologia maduros na empresa, o trabalho de um devops, de um data engineer ou a construção de um dashboard analítico podem ser exemplos em tecnologia.
Complexo: é o domínio dos “desconhecidos desconhecidos”. Não há respostas certas e causa e efeito só podem ser analisados em retrospectiva, ou seja, depois que um evento aconteceu. Investimentos, seguros, medidas governamentais na economia, sucesso nas redes sociais etc. cabem nesse campo. A implantação de uma nova feature (funcionalidade) no Instagram, que modifique a usabilidade atual, a gestão de produto em geral, a decisão de negócio frente a uma mudança na legislação vigente são exemplos em tecnologia e inovação.
Caótico: é o domínio dos “cisnes negros”, para usar uma expressão de Nassim Taleb, mas também pode ser o espectro onde não há nada consolidado (o popular: “era tudo mato”). Não há como calcular probabilidade aqui, por que se desconhecem variáveis e até mesmo pontos de partida e objetivos. Hospitais lidando com a Covid são exemplos, mas empreitadas como a chegada de Colombo às Américas, a fundação da Disney, a escalada do Uber (a disrupção, de modo geral) também têm esse contexto. Você não consegue fazer previsão e tem que ir reagindo ao cenário.
Para facilitar, podemos juntar o “simples” e o “complicado” em um único conceito e o “complexo” e o “caótico” em outro, embora haja feitos específicos (operar algo disruptivo, por exemplo), que podem se situar na fronteira do “complicado-complexo”.
(Os limites entre domínios são modelos mentais que nos ajudam a pensar, então, têm serventia. Mas é melhor encará-los como escala contínua e não discreta, um degradê suave e não faixas de cores definidas. Na realidade, obviamente, nada disso existe: são imaginações que criamos para abstrair entendimentos em nossa cabeça e permitir a comunicação.)
Usando outros conceitos criados por Taleb, poderíamos dizer que o “simples-complicado” está no “Mediocristão”, o domínio da distribuição normal (das “curvas em forma de sino”), onde as variáveis são conhecidas ou conhecíveis; o “complexo-caótico”, no “Extremistão”, o domínio dos outliers e dos outliers possíveis, onde as variáveis são desconhecidas e terão de ser descobertas ou criadas. Mas fiquemos com “simples-complicado” e “complexo-caótico”, com alguma permissividade a um eventual “complicado-complexo”.
O erro que viemos punindo por anos na educação e no trabalho tem mais a ver com o “simples-complicado” do que com o “complexo-caótico”. Já o hype da “tentativa e erro” que vivenciamos nas últimas décadas — onde o erro é visto como benéfico, como aprendizado, como exposição a riscos — é aquele que ocorre no “complexo-caótico”. Vamos explorar cada um deles.
Tentativa e erro no “simples-complicado”
O “simples” é o que está consolidado ou é fácil de consolidar, com poucas etapas, relação causal entre elas, sistemas fechados (determinísticos), poucas variáveis, risco reduzido ou controlado. Erro no “simples” é, basicamente, estar em desacordo com um padrão ou o padrão estar em desacordo com a realidade (documentação ou fluxo de processo desatualizados, por exemplo).
A menos que se trate de um artesão tentando moldar um vaso que julga perfeito (processo simples, poucas etapas, escala restrita) ou estejamos falando do aprendizado simulado do processo, por mais simples que seja, não faz muito sentido aplicar tentativa e erro na execução do “simples”. Nem a arte, mais complexa que a artesania, se encaixaria neste domínio.
Se faz sentido a transposição de domínio, é porque não conhecemos as variáveis, o processo não está claro, ou seja, não estamos falando do “simples”, mas provavelmente do “complexo” (ou, de novo, estamos aprendendo de forma simulada algo que já está estabelecido, em que a “tentativa e erro” destina-se a aquisição de conhecimento por parte de uma pessoa).
O domínio do “simples” é o mais fácil de automatizar. É onde a máquina e a Inteligência Artificial superam os seres humanos e são a melhor saída em relação a executar o que está estabelecido por padrão, principalmente em escala, e, consequentemente, “errar menos”, pelo menos do ponto de vista matemático. O fato de tarefas do domínio “simples” serem repetitivas e, para muitos, tediosas, são um incentivo para falha humana, por exemplo.
As linhas de produção fabris que vimos despontar no século XIX e se estabelecer no século XX estão neste domínio. Vários conceitos do exército e da guerra, apesar disso ter mudado bastante após as grandes guerras mundiais, basearam-se ou herdaram características desse domínio. A educação foi pelo mesmo caminho: ensinar era linear, o professor transmitia o conteúdo e o aluno absorvia.
Apesar de não ser espaço adequado para tentativas, ainda assim erros no domínio do “simples” permitem aprendizados. É viável fazer engenharia reversa de processos com relação causal. Implantar sistemas de detecção de falhas e mecanismos de correção e atualização rápida de padrões (preferencialmente, automatizados) são algumas das lições que se pode extrair de erros ocorridos aqui.
Listas de verificação (check-lists) ou a adoção ou adaptação de sistemas, como o da Toyota — que deu origem ou influenciou metodologias de gestão como a manufatura enxuta (lean manufacturing, que décadas depois influencia o lean startup), o six sigma, o kanban, entre outros — também são soluções nesse âmbito.
Em caso de erros humanos recorrentes nesse domínio, talvez seja porque a própria metodologia de contratação de pessoal, o alinhamento de expectativas e competências entre empresa e colaborador ou as condições de trabalho também precisem de melhoria contínua.
Tomando um exemplo simples, podemos pensar, novamente, no padeiro. O fato de uma fornada de pão sair mais salgada ou mais assada do que o gosto dos fregueses são procedimentos facilmente corrigíveis. Um dispositivo para medir a quantidade de sal e um forno automatizado, mesmo que em um primeiro momento representem custos, rapidamente se transformam em benefício, desonerando o padeiro de operações básicas para que possa gerenciar melhor toda a cadeia de produção de pães ao longo do dia (ou, quem sabe, até aplicar “tentativa e erro” em uma receita nova).
Algumas das regras acima também podem valer para o domínio “complicado”. Na verdade, o “complicado” pode ser entendido como uma coleção de “simples” encadeados. Aqui, porém, análise de riscos, antecipação de cenários e inspeção rigorosa — uma exploração sobre erros decorrentes do encadeamento — são ferramentas necessárias.
Nada, também, que não seja páreo para um pouco de Project Management e seu PMBOK ou de Business Process Management (BPM) e seu BPM CBOK. Tudo bem que atualmente há um certo “asco” para com métodos de administração e gestão tradicionais, principalmente em ambientes de inovação, mas vale lembrar que são maduros e consolidados e é interessante conhecer onde se aplicam ou o que se pode extrair deles.
A aviação é um dos ramos que melhor exemplificam o tratamento de erros em domínio “complicado” (este é um caso de ramo que está na transição com o complexo, mas dado ser uma indústria amadurecida, muito do que opera se encaixa no “complicado”).
Todos os aviões, por padrão, passam por inspeção em solo, antes de levantar voo e após aterrissar. Quaisquer falhas obrigam a extensos e detalhados relatórios, investigando causas e sugerindo medidas de mitigação. Acidentes, por mais graves que sejam, levam à instituição de novas práticas para todas as companhias. Para citar mais um conceito criado por Taleb, é uma indústria “antifrágil”: o negócio fica melhor com os danos que sofre (embora a regulamentação extrema possa, também, frear sua inovação).
Um pouco de como a coisa funciona. Em 2009, um piloto da US Airways ficou famoso e foi elevado a herói ao conseguir realizar um pouso de emergência no leito do rio Hudson, em Nova York. A foto dos passageiros e tripulação, são e salvos, sobre as asas do avião, é memorável. Mesmo assim, para o negócio da aviação, o piloto teve de prestar depoimento e sustentar, de forma racional e convincente, por que tomou a decisão (e correu o risco) de pousar na água.
Em 2015, em um voo da Germanwings, o desfecho foi trágico, mas gerou aprendizado praticamente imediato. O copiloto, que, descobriu-se depois, sofria de transtornos mentais e tendências suicidas, em um momento em que ficou sozinho na cabine, trancou-a e colidiu a aeronave contra os Alpes Franceses, matando 150 pessoas. Aprendizado: três dias após, agências reguladoras estabeleceram que se piloto ou copiloto tivesse de deixar a cabine, outra pessoa da tripulação deveria fazer companhia a quem ficou nela.
Casos como o rompimento da barragem de Mariana (2015), vazamentos de petróleo como do da British Petroleum no Golfo do México (2010) — onde operações estão estabelecidas — passam por processo parecido.
Em tecnologia da informação, áreas como segurança da informação, data engineering, devops (ou o mais recente data ops), a própria construção de software, em muitos casos, transitam muito no “complicado”. A implantação de um projeto de entrega contínua e integrada de código (CI/CD), por exemplo, depende de se seguir um caminho racional e sequenciado, como “conectar encanamentos” (para ficar numa imagem associada à área).
Em resumo, praticamente tudo que já foi descoberto, está estabelecido, obedece a padrões e requer apenas que seja operado situa-se nesse domínio. Não é um campo para tentar, mas a “tentativa e erro” tem vez, aqui, se estamos em busca de melhorar ou subverter (“disruptar”, digamos) os padrões existentes, conectar mais de um “complicado” em cadeia ou se estivermos intrigados em como capturar algo novo que se acople à nossa operação. Aí podemos ir ao próximo tópico e encarar o “complexo-caótico”.
Tentativa e erro no “complexo-caótico”
O “complexo-caótico”, ressalta-se, não possui padrões estabelecidos a serem seguidos, etapas claras, relações causais ou, no caso do “caótico”, não há nem pontos de partida. No “complexo”, podemos ter informações, mas parciais, fragmentadas, insuficientes. No “caótico”, nem isso. Não sabemos em que território estamos pisando e não temos um mapa dele ou, quando muito, só temos um pedaço rasgado e talvez desatualizado de um mapa. É mais ou menos como navegar sem bússola e outros equipamentos em meio a um nevoeiro (“complexo”) ou tempestade (“caótico”).
Quando tratamos de inovação, startups, economia criativa, produtos (ou serviços) construídos sobre software, “tentativa e erro” não é apenas uma expressão em alta, associada a uma certa “rebeldia” criativa, mas uma necessidade vital para que iniciativas deste espectro possam florescer nos domínios citados. Justamente porque reúnem punhados de “desconhecidos desconhecidos”.
O cerne de toda a questão está em “aprendizado”. Assim como, a nível pessoal, tocar um instrumento, programar, realizar cálculos matemáticos, arremessar pesos, enfim, envolve um certo “sofrimento” (iteração) até a proficiência, explorar oportunidades (e riscos) no “complexo-caótico” tem a mesma lógica.
É claro que se no aprendizado individual podemos nos dar ao luxo de tentar e errar com ganhos a longo prazo (no fundo, é assim que amadurecemos), em negócios que envolvem inovação e, portanto, riscos mais evidentes do que em ramos tradicionais, a eficiência nos cutuca o tempo todo.
É cruel: precisamos, muitas vezes, exercer esforços que intuímos que dariam resultados após uns cem loops de reforço, quando temos recursos para executar apenas dez loops e entregar resultados tão bons quanto. Do contrário, podemos ser atropelados pela concorrência, clientes perderem interesse, erros em pequenas partes (produto, serviço, processo) transformarem-se em uma bola de neve no todo (no limite, a falência do negócio).
Isso, é claro, se falarmos de startups ou produtos ou serviços em fase de validação (buscando market-fit), talvez até de crescimento (growth), onde partes e todo andam bastante amarradas. Se considerarmos um negócio consolidado, que já tem produtos maduros (“vacas leiteiras”), é menos sofrível gastar energia na descoberta de oportunidades secundárias (talvez, complementares à principal), desde, é claro, que estas não signifiquem risco de levar o negócio ou outros produtos ao brejo.
Um lembrete vindo da realidade: também não é fácil cultivar essa disposição, de curiosidade, descoberta e exploração de novas oportunidades quando há um gama de produtos maduros a serem mantidos. O possível não gera chamados para acompanhamento, manutenções e incrementos; já o que foi consolidado nos escraviza a isso. É mais fácil baixarmos a cabeça para o segundo, que garante a sobrevivência, do que levantá-la para o primeiro, que pode, afinal, não dar em nada.
Onde “tentativa e erro” é crucial, já que há muito a ser descoberto e consolidado incrementalmente, algumas ferramentas para que explorações no desconhecido tenham sucesso são: cultura organizacional propícia, encorajar a se tentar e errar (não culpabilização, não punição) e algum combinado mínimo sobre quanto tempo pode durar um experimento, se afetará processos em produção, sobre qual amostragem da base de clientes será avaliado etc.
A vantagem do digital é que permite explorar oportunidades com redução de custos e riscos. Exemplos: venda antes do lançamento de um produto, para testar se há adesão, trials (versões gratuitas para uso parcial e temporário) ou as mais recentes “fake doors”.
Pense-se no growth marketing, onde a regra é lançar promoções, descontos, cupons e tickets, testando rapidamente o que está convertendo mais, o que está atraindo e retendo novos clientes ou evitando desistências (churn). Os riscos são baixos. No máximo o cliente pode não querer receber notificações ou e-mails, situação em que também sairá perdendo porque deixará de acompanhar oportunidades de descontos ou ganhos.
Ou considere-se um aplicativo de consulta com psicólogos — vários do segmento estão em evidência com a pandemia. Digamos que se quer testar a possibilidade de terapia em grupo, além da terapia individual, já ofertada. Em vez de implementar todo o serviço ou uma parte dele em produção, tendo de mobilizar psicólogos, modificações no produto e em regras de negócio, inserimos apenas uma feature simples para a opção, um botão ou caminho.
Ao acessá-la, o interessado recebe informações de que a terapia em grupo é um experimento e que pode se cadastrar para participar. Havendo um número significativo de cadastros, é sinal de que há mercado e, aí sim, pode-se construir todo o “encanamento” que irá viabilizar a novidade.
Do contrário, basta desativar a opção e enviar um e-mail aos cadastrados explicando que não houve demanda. Em produtos com um bom engajamento e atendimento ao cliente, nada que uma boa copy e um pouco de UX writing não consigam comunicar de forma suave, sem grandes riscos à marca ou ao produto.
Uma vez implantada a terapia em grupo, logo à frente se descobre que clientes preferem uma melhor segmentação dos grupos (por exemplo, além de segmentar por clientes que vivenciam um mesmo tipo de situação, colocá-los em grupos de mesma faixa etária). Tentativa e ajuste.
Talvez se descubra, logo adiante, que clientes gostariam de indicar parentes ao mesmo grupo, mas a outra pessoa não tem condições de pagar o plano integral. Pode-se testar algum tipo de cupom ou benefício ou explorar terapia em grupos de familiares. Tentativa e ajuste de novo.
Note-se que é um processo de começar no “complexo-caótico” e, aos poucos, incrementalmente, ir transformando problema, oportunidade, desejo, demanda, como se queira, em artefatos informacionais que migram para o “simples-complicado”.
Entre vários insights interessantes para o tema em questão, em um artigo publicado na Harvard Business Review intitulado “Strategies for Learning from Failure”, a professora e pesquisadora Amy Edmonson, autora de “The Fearless Organization” (“A Organização do Medo”, em tradução livre), lembra que o trabalho a ser feito no domínio “complexo-complicado” é como o de cientistas. O objetivo deve ser o de “produzir fracassos estrategicamente”, em suas palavras.
A ciência é feita de lançar hipóteses para ver se colam na parede da realidade. Estatísticas, segundo o artigo, apontam que mais de 70% dos experimentos falham. Dos 30% restantes, porém, podem sair descobertas que representam o domínio de um mercado ou avanços até mais nobres, como benefícios à sociedade. Além disso, os 70% de falhas não são recursos jogados no lixo: geram informações que permitem corrigir rumos ou serem agregadas em pesquisas futuras.
O método lean startup, a gestão atual de produtos e as abordagens orientadas por dados bebem muito no método científico. O objetivo é descartar julgamentos subjetivos, crenças, hábitos pessoais e vieses cognitivos na abordagem de problemas e soluções.
No mesmo artigo, a pesquisadora lembra sobre como uma cultura de averiguação de pequenos erros (antes de virarem bolas de neve e comprometerem o todo) e, sobretudo, de comunicação aberta, são vitais para iniciativas em domínio “complexo”.
Um exemplo que demonstra isso é o do ônibus espacial Columbia, que explodiu no ar matando sete astronautas em 2003. Causa: gerentes da NASA minimizaram comunicados de engenheiros de que um pedaço de espuma havia sido danificado no revestimento da aeronave, em seu lançamento. Problema pequeno, aparentemente. Dezesseis dias depois, com a viagem ao espaço concluída com sucesso, o ônibus espacial se desintegrou ao reentrar na atmosfera.
“Mais frequentemente do que imaginamos, sistemas complexos estão em ação por trás das falhas organizacionais, e suas lições e oportunidades de melhoria são perdidas quando a conversa é sufocada.” — Amy Edmonson, em Strategies for Learning from Failure”.
Outro ponto de atenção sobre tentativa e erro no “complexo-caótico”: tentativa e erro às cegas, como quem dispara uma rajada de metralhadora ao léu, tentando adivinhar se há um alvo à frente, é desperdício de munição (recursos); uma missão e uma visão para guiar a busca no desconhecido pode economizar cartuchos e encontrar alvos em potencial de maneira bem mais assertiva.
É um pouco do que Tood Zenger expressa em outro artigo, “Trial and Error Is No Way to Make Strategy” (“Tentativa e erro não são maneiras de fazer estratégia”, em tradução livre), também na Harvard Business Review:
“A diferença entre sucessos e fracassos estratégicos tem muito mais a ver com a qualidade da teoria que está por trás dos experimentos estratégicos de uma empresa do que com o ritmo de experimentação. Sustentar a criação de valor, por extensão, requer melhores teorias corporativas — não pivôs de ritmo acelerado.” — Tood Zenger, em “Trial and Error Is No Way to Make Strategy”
Como ele também cita, é um pouco o clichê de Alice no País das Maravilhas: “se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho serve”. Podemos não saber exatamente quais passos vamos dar no desconhecido. Isso é impossível de precisar. Mas podemos intuir, imaginar e criar visões do que queremos explorar nesse desconhecido. Aí entra outra lição para se guiar no “complexo-caótico”: mesmo que na restrição e no curto prazo, priorizar pensamento sobre ação pode ser uma vantagem.
“[...] Em um cenário competitivo simples, todos podem ver a solução estratégica e o sucesso é vencer a corrida. Em um terreno complexo, entretanto, aqueles com uma teoria orientadora terão maior probabilidade de identificar novas posições de vantagem competitiva” — Tood Zenger.
Tentar e errar com sabedoria no “complexo-caótico”, em pequenas doses incrementais, como o alpinista que desbrava nuts após nuts (equipamento para prender a corda à pedra) uma encosta intocada, pode ser a chave que abre portas de belos horizontes (oportunidades), em resumo.
Uma vez descoberto o veio de ouro, muito do trabalho é o de migrar o que se encontrou para o domínio do “simples-complicado”, bem mais administrável, onde padrões são estabelecidos, automatização se torna viável e escalar operação é o novo desafio.
Resumindo e ampliando
A compreensão de organizações, projetos, processos, produtos ou serviços nos domínios “simples-complicado” e “complexo-caótico” ajuda a perceber onde “tentativa e erro” é o mindset a ser adotado e onde pode comprometer uma operação já estabelecida.
Embora fique claro com os exemplos e pareça óbvio, a falta desse de enquadramento no dia a dia pode levar a situações conflitantes e danosas: executar manobras arriscadas em um domínio consolidado e padronizado ou ser conservador quando o assunto é descoberta e exploração.
O assunto é amplo e interdisciplinar, aplica-se à engenharia (tecnologia) e a negócios, a design e ao mundo dos dados. Permite aliar conhecimentos de exatas e de humanas (e “mundanos”). É um modo mais claro de enxergar do ponto de vista de aprendizado individual, mas que ainda é um desafio de ser aplicado coletivamente, seja em grupos (squads de trabalho, por exemplo) ou organizações inteiras.
Talvez buscas em áreas mais críticas possam somar percepções sobre a aplicação de tentativa e erro nos domínios tratados. Pense-se em saúde, defesa (exércitos e guerras sempre são riquíssimos para estudos de estratégias e táticas em domínios diferentes) ou mesmo no esporte — futebol por exemplo, que está mais distante de um “simples-complicado” como o tênis.
Outro ponto que tem potencial para ser uma boa exploração é o do ganho da escala de sistemas no domínio “simples-complicado”, o que os transpõe ao “complexo-caótico” de forma difusa, camuflada, sem evidências claras, o que aumenta riscos (os efeitos da “convexidade”2, para usar outro termo usado por Taleb).
De outro modo: se olharmos para as partes ou até para sistemas “relativamente” fechados, veremos padrão, processo, relações causais, nada que convide à exploração; se observarmos (não é tarefa fácil) a combinação desses sistemas fechados ou de um milhão de partes operando juntas, há chance estarmos em “desconhecidos-desconhecidos” sem perceber.
A diferenciação de “simples-complicados” de “complexos-caóticos”, a noção de continuidade entre eles e da transição entre domínios é um desses temas que parecem etéreos, um tanto “teórico”, mas que pode ser enxergado em praticamente todo o mercado de tecnologia e de inovação.
Permite maior clareza sobre oportunidades e riscos, onde cabe avançar ou ter cautela e, por fim, como lidar com erro de forma mais técnica, precisa e consciente, o que pode ajudar na transição de culturas de comando e controle para as de incentivo ao aprendizado, à exploração (produção estratégica de pequenos fracassos) e comunicação transparente sobre falhas.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.
O quarteto “conhecidos conhecidos”, “conhecidos desconhecidos”, “desconhecidos conhecidos” e “desconhecidos desconhecidos” hoje goza de respeito em muitas abordagens econômicas e de avaliação de risco, mas ganhou ênfase a partir de uma declaração de Donald Rumsfeld, ex-Secretário de Defesa dos EUA, em 2002, durante entrevista, que em um primeiro momento foi recebida como ridícula.
Para se aprofundar sobre convexidade, ver, especialmente, capítulo 18 de “Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos”.