A busca por perfeição que persiste em produto em um contexto adaptativo
Quadrinhos da Mona Lisa, darwinismo digital, grande visão de longo prazo vs. hacking e reflexões sobre perfeição em produto em “oceanos vermelhos”, onde estratégia pode ser apenas movimentos táticos
A comunidade Product Guru’s reproduziu uma tirinha satírica sobre Gestão de Produtos no Linkedin, recentemente. A imagem, traduzida da Product School (a Mona Lisa é um prato cheio para humor) — a brincadeira original parece ser com música, mas serve para uma série de paródias — é a seguinte:
A historinha lembra outra tirinha mais antiga, da árvore e o balanço, que teria nascido na Gestão de Projetos, nos anos 70, e ganhou muitas variações depois:
Ambos os quadrinhos tratam da necessidade de alinhamento entre times e stakeholders de produtos ou projetos, mas, especialmente o da Mona Lisa, nos leva a outra reflexão: sobre uma certa busca por “perfeição” que parece persistir seja na gestão de produtos, seja no design de produto, seja na engenharia de produto e como isso conflita com a teoria, cada vez mais propagada, de que as empresas vivem um darwinismo de mercado.
A Mona Lisa é um bom mote para falarmos sobre perfeição. A pintura é considerada um dos quadros mais famosos do mundo e, embora não esteja à venda, é o mais valioso do planeta. Definiu o que é um retrato. Ajudou Leonardo da Vinci a ser um dos maiores “homens da Renascença” (até hoje procuram-se similares em outros domínios). Tanto que a obra é esmiuçada, desperta paixões e intriga muitos, a ponto de já ter sido roubada, recuperada, apedrejada e passado por todo tipo de raio-X e até “análise de emoções”, na tentativa de se saber suas origens, características e segredos que alguns juram que oculta.
O mérito dela está em ser dúbia, sugestiva, que nos permite multiplicar histórias a respeito. Não se sabe se ela foi planejada ou não, se Da Vinci projetou e realizou a “aura” do quadro durante todo o processo. Há quem estuda isso há anos para, quando muito, receber críticas de alas opostas.
O que a paródia da imagem permite refletir é: e se o produto lançado (a Mona Lisa deformada) fizer sucesso, mesmo assim? E se ele passar a ser vista como diversidade e inclusão, por qualquer motivo não previsto nas etapas anteriores? (Alguns podem até argumentar que estamos partindo de padrões excludentes para decidir o que é “ideal”). E se ele vender mais — principalmente isso — do que o objetivo do produto (a Mona Lisa original)? E se os tempos forem outros e uma Mona Lisa já não seja o padrão de consumo?
O que diríamos? Aceitaríamos sem questionamentos? Repetiríamos que usuários, clientes, consumidores não sabem o que querem? Ainda ficaríamos intrigados com o processo entre o objetivo e o produto lançado? Não havíamos contado com a aleatoriedade e a sorte, que, sabe-se lá por que, tendemos a afastar ao máximo, quando são indissociáveis da vida? Alguém não fez o trabalho de levantar as necessidades dos usuários, clientes ou do mercado da forma como a cartilha prega (outra busca por perfeição)?
De outro modo, também poderíamos perguntar: se o produto lançado não ganhou mercado, ainda assim, como iríamos inferir que isso se deve à divergência, à distância, entre a versão entregue e a versão idealizada (objetivo do produto)? Não estaríamos, no fundo, vivendo reminiscências do waterfall, querendo que o produto entregue seja exatamente o planejado?
As reflexões são infinitas, como as interpretações sobre a Mona Lisa. Obviamente, não se trata de crítica à tirinha de humor. O mundo (e a tecnologia, especialmente) se levam a sério demais e é ótimo, até necessário, rir um pouco de nós mesmos. Melhor ainda se isso servir de pretexto para pensarmos uns minutos fora da bolha.
Platão, arte e matemática
Buscas pela perfeição, literais ou especulativas, nos fazem esbarrar em Platão, um dos filósofos mais conhecidos de todos os tempos (talvez porque só prestamos atenção à primeira aula de Filosofia mesmo e esquecemos de quem vem depois).
É associado ao “amor platônico” e autor do conhecido Mito da Caverna, abordado em muitas aulas de filosofia de colégio, e que serve de pano de fundo para enredos como o do filme Matrix.
O que nos interessa, porém, é sua forma de pensar idealista e dualista. Para ele, basicamente, há um mundo ideal (das ideias), superior, abstrato, onde habitam formas perfeitas, como um ser humano perfeito, um cachorro perfeito, um triângulo perfeito. E a realidade, onde o que existe são cópias imperfeitas do que existe naquele mundo superior das ideias.
Não fica claro se esse raciocínio é uma criação de Platão que nos influenciou tanto a ponto de parecer algo dado, imutável, ou se é uma visão, uma vontade de visão “natural” nossa, que Platão só tratou de evidenciar — ou seja, que tendemos a manifestar mesmo sem saber nada sobre Filosofia e platonismo.
O fato é que esse modo de pensar nos influencia até hoje, por meio do Cristianismo, que adotou a dualidade para falar sobre reino dos céu e vida terrena, alma e corpo, e, não tão óbvio, pela Matemática, que há tempos avança sobre os mais diversos domínios do conhecimento (computação, analytics, qualquer coisa baseada em dados e teoria da decisão são todas “filhas” dela).
Quem vem de um background de exatas, como computação ou engenharias, inevitavelmente transita nessa dualidade entre a perfeição da Matemática Pura e os desafios de sua aplicação na realidade. (Uma curiosidade é a Física, que parece ter aprendido muito mais a pensar a partir de probabilidades e incerteza do que se apegar a construtos lógicos perfeitos).
De outro lado, está a arte ou seu estudo, a Estética, que lida (já lidou mais) com a noção do belo, da beleza ou daquilo que agradam aos nossos sentidos. Desenvolveu-se até a estratificação de produções artísticas em castas por isso (cultura erudita, cultura de massa e cultura popular), como se uma fosse mais “verdadeira” e “autêntica” do que as outras.
Seja quem teve uma educação mais voltada a métodos quantitativos (desenvolvimento de software ou análise de dados, por exemplo), seja quem vem de escolas que bebem na Estética (design, por exemplo), de alguma maneira fomos levados a pensar em termos dualistas e a enxergar distância entre expectativas versus realizações, entre horizontes e a árdua caminhada para se chegar até eles, mesmo sendo algo impossível na prática.
Essa visão acaba transposta para os domínios de negócios em que trabalhamos, os quais, nas décadas recentes e certamente nas próximas, são estressados por uma narrativa cada vez mais forte: a do darwinismo digital, onde só resta mudança constante, adaptação evolutiva e competição por sobrevivência dos mais fortes. Ou seja, onde olhar ao horizonte torna-se luxo diante da necessidade de aproveitar oportunidades e esquivar-se das ameaças próximas.
Grande visão vs. hacking
A busca por perfeição no mundo dos produtos de software tem raízes no ambiente onde nasceu, a Computação, a qual bebe no plano dos fluxos perfeitos da Lógica e cálculos exatos da Matemática.
A necessidade de construir software “correto” desde o início, uma questão de otimização, também matemática, levou à metodologia Waterfall, a qual, mais tarde, foi substituída pelo Agile, mas que ainda é uma busca por processos, que cheiram a busca por padrões e, no fundo, perfeição. (Contamos um pouco dessa história em “Uma história da Gestão de Produtos”).
Não teria como ser diferente, já que software é sobre projetar e construir, e toda construção mal projetada ou mal erguida corre riscos de desabar ou exigir manutenção constante para que isso não ocorra, o que, na prática, retornará aos construtores na forma de culpa e retrabalho — este último, um “crime” contra a otimização.
A dificuldade é que essa vontade por método, lógica perfeita e cálculos inteiros impulsionou negócios desafiadores, inovadores, disruptivos, repletos de riscos e incerteza, onde não se sabe de antemão o que construir, sobre que tipo de solo será construído e como irá evoluir ao longo do tempo: o ambiente onde a narrativa do darwinismo digital prospera.
Darwinismo digital é uma tendência da última década, exponenciada com a Covid, de que a busca por inovação disruptiva deve ser urgente e constante para que uma organização sobreviva e se mantenha relevante no mercado, o que coloca uma carga grande de estresse no curto prazo e dificuldades para planejamento a longo prazo.
Diz a teoria que a organização pode rapidamente ser atropelada por qualquer outra iniciativa que proporcione um produto ou serviço melhor — a qual, novamente, está sujeita a ser atropelada por outros competidores mais eficientes. Tem a ver com a maior quantidade de players, e de players mais agressivos, no mercado de tecnologia.
As duas maneiras de negócios e seus produtos encararem esse contexto, que podem ser combinadas, são:
uma grande visão de longo prazo, que não abandona completamente a busca por “perfeição”, mas a coloca como um horizonte até utópico, ao qual soluções de curto e médio prazo são acopladas para criar soluções de certa forma “robustas”; é usual em organizações inovadoras que já escalaram ou estão maduras, até como forma de resumir sua complexidade, mas que pode criar “navios cargueiros” corporativos, como veremos;
a abordagem hacking, menos usual, mas que parece estar sendo incentivada nesse contexto darwinista, em que o jeito é criar rápido, jogar no mercado, quebrar se for o caso, se possível em várias tentativas e frentes; em resumo, o suprassumo da adaptação evolutiva, do “sobreviva ou desapareça”, em que a única regra são apostas com o menor gasto de energia possível e com maior retorno possível a curto prazo — algo como lançar várias jangadas ao mar.
A visão de produto e design do fundador do WeChat, que abordamos nesta Newsletter, é um exemplo da grande visão de longo prazo. A obsessão de Steve Jobs, que queria ver refinamento até nos parafusos dos primeiros Macintosh, é um dos pontos altos dessa cultura. Os conceitos de design de Dieter Rams estão na origem dessa linha.
A Google e sua missão de indexar toda a informação que produzimos talvez seja uma dedução dessa busca por perfeição (“indexar toda a informação”), um trabalho que pode levar séculos, mas que é cumprido por meio de pequenos processos que se acoplam à grande visão.
A abordagem parece servir muito bem a quem chega primeiro, quem descobre ou “disrupta” um mercado, e ganha vantagem significativa (no jargão de produtos e startups, a “vantagem injusta”). É a metáfora do “oceano azul”, em resumo. De outro modo: funciona bem quando há pouca ou nenhuma concorrência à visão e, ao que tudo indica, cenário favorável ou poucas ameaças externas.
Tomemos o exemplo de uma das startups que está entre os dez “unicórnios” mundiais, a Databricks, avaliada em 28 bilhões de dólares (abordamos startups brasileiras e mundiais em “Um panorama das startups brasileiras”).
Nascida da cabeça de acadêmicos mais preocupados em otimizar a solução (busca por “perfeição”) do que vendê-la e transformá-la em dinheiro, a startup se dedica a um ramo promissor, que certamente será requisitado por muitas outras empresas neste século, e parece ter poucas ameaças, pelo menos a médio prazo: o de solução de transformação de dados e aprendizado de máquina para negócios, um “produto assertivo”, convenhamos.
(Mais sobre a Databricks pode ser lido na ótima reportagem “Accidental Billionaires: How Seven Academics Who Didn’t Want To Make A Cent Are Now Worth Billions”, “Bilionários acidentais: como sete acadêmicos que não queriam ganhar um centavo agora valem bilhões”, na Forbes, de maio de 2021.)
É um tipo de negócio que consegue colocar uma visão utópica, um grande horizonte, por exemplo (“fornecer solução de dados e machine learning acessível a qualquer pessoa de qualquer negócio”) e que pode ajustar iniciativas de curto e médio prazo para tentar atendê-la. Talvez ainda possa se dar ao luxo de perder algum tempo com planejamento e refinamentos da solução, dada as circunstâncias do mercado em que atua.
Como dito, é a forma usual que organizações que já escalaram e estão maduras acabam atuando para conciliar e simplificar toda sua complexidade mais ou menos dentro de uma mesma trajetória.
A dificuldade é que o acoplamento e amarração de soluções para satisfazer a grande visão, não raro, cria “navios cargueiros”, mamutes tecnológicos difíceis de manobrar em cenários adversos ou de adaptar a mudanças de cenários futuros, embora costumem ter recursos de sobra no convés para sobreviver a tormentas e, sendo inteligentes, lançar pequenas embarcações para explorar novas oportunidades.
A outra maneira de lidar com a “perfeição” — a qual parece ser cada vez mais incentivada — é jogando-a fora e adotando uma abordagem hacking. Hacking, aqui, pode ser definido como solução ágil, não ortodoxa, que aos mais conservadores pode cheirar a “gambiarra”, como forma de pular etapas na resolução de problemas ou de tentar abordagens na incerteza.
O Facebook, em seus primórdios, por volta de 2005, talvez seja um dos grandes exemplos de organização onde o hacking imperou, e onde deu certo, tanto que serviu de inspiração depois. A regra era não ter regras e lançar melhorias ou inovações sob risco — e acordando, no dia seguinte, com uma multidão protestando em frente à sede da empresa, como aconteceu quando o news feed foi lançado.
Aliás, a empresa é um exemplo nada comportado no mundo tech: funcionou em uma sede grafitada com pornografia, tinha barril de cerveja no meio e os programadores dormiam sob bancadas, com Zuckenberg gritando “Dominação!”, como relembram integrantes da empresa na reportagem “Sex, Beer, and Coding: Inside Facebook’s Wild Early Days in Palo Alto” (“Sexo, cerveja e codificação: por dentro dos primeiros dias selvagens do Facebook em Palo Alto”), na Wired.
Na analogia com embarcações, seria como lançar jangadas ao mar, pequenas e capazes de mudar rapidamente de direção, cada uma otimizando táticas para aproveitar oportunidades diferentes, talvez até opostas, sem se amarrarem umas às outras em uma mesma direção.
Ao que parece, essa segunda abordagem seria muito mais adaptativa, eficiente (em termos de consumo de recursos), mais “antifrágil”, em um futuro com competição selvagem e muitos “desconhecidos-desconhecidos”, conforme apregoa a narrativa do darwinismo. Seriam formas de encontrar oceanos azuis depois que os conhecidos já se tornaram vermelhos.
Organizações que conseguem conciliar ambas as abordagens, mantendo os princípios de cada uma (uma visão unificadora de longo prazo que abarque iniciativas ágeis e desacopladas, capazes de explorar rapidamente mudanças e novos cenários), parecem ter a pedra filosofal dos novos negócios.
É claro que é muito mais fácil adotar uma abordagem hacking em modelos de negócios iniciais e pequenos do que em negócios consolidados. Também há diferenças em adotá-lo quando se navega confortavelmente em mares piscosos, com uma boa bagagem de recursos (uma grande empresa que se consegue manter inovadora, por exemplo, explorando novos produtos), do que adotá-lo a partir de uma embarcação grande e antiquada, com rachaduras no casco, e que de repente vê cardumes ficarem escassos e o Cabo das Tormentas se aproximando — o viés de aversão à perda falará alto nessa situação.
Acoplar a inerente busca pela perfeição da tecnologia a uma abordagem hacking também tem seus trade-offs. À medida que, mesmo soluções enxutas e independentes fornecem saídas que servem de entrada a outras micro soluções, forma-se complexidade e acoplamentos, ou seja, criam-se “cargueiros de jangadas”, que tornam inviáveis manobras rápidas de curto prazo. Algum planejamento tem de haver para evitar que o emaranhado de pequenas embarcações, por erro de cálculo na praticagem, fique à deriva ou estraçalhe-se contra um rochedo.
A complexidade e acoplamento é o que cria distância entre a Mona Lisa entregue e a Mona Lisa objetivada (e também dá origem às expectativas das demais Monas Lisas). Abordagens mais leves jogam fora o ideal de Da Vinci e partem para diversificação e risco.
Mais tático-empírico do que estratégico-visionário
Ao menos em teoria, parece superado que construir produtos centrados em necessidades e desejos do usuário e argumentados por dados é a receita para se combater a busca por perfeição nascida da cabeça de CEOs, PMs, designers e engenheiros.
Há uma vasta gama de artigos recomendando isso web afora (em “Indo além”, listamos alguns). Basicamente, o exercício é focar no lado da demanda, não o da oferta.
Na prática, sabemos que nem todas as organizações compreenderam esse ponto, mas é algo que, segundo o que se repete, deverá custar caro a elas em um momento. Se não custar, é porque, provavelmente, os criadores da solução ou deram sorte ou tinham faro ou expertise para intuir o que o mercado necessitava ou desejava antes de consultá-lo. Não é impossível que isso aconteça, mas parece mais difícil nos dias atuais.
A questão continua sendo como capturar rapidamente esses desejos e necessidades dos usuários, clientes ou, vamos resumir, do mercado (grupos de pessoas físicas e/ou jurídicas), transformando-a em entradas a soluções que se adaptem rapidamente a tais demandas.
Em cenários de maior estabilidade e concorrência razoável, é possível apostar em planejamento e grande visão, ou seja, em estratégia de longo prazo, com alguns movimentos táticos de curto prazo, como dito.
No cenário que se desenha para os próximos anos e décadas, porém, segundo a narrativa do darwinismo digital, parece que o hacking terá de ganhar espaço, com muitos movimentos táticos de curto prazo, baseados em empirismo, tentando explorar oportunidades com o máximo de otimização.
Isso derruba qualquer busca ou mesmo simples lampejo sobre perfeição, até porque ela depende de padrões e de medir distâncias para comparações, e na urgência do "sobreviva ou morra" há poucos padrões aos quais se agarrar e pouco tempo para computar comparações. O que, por sua vez, pode minar estratégias que se queiram mais visionárias.
Talvez devamos objetivar menos Mona Lisas de Da Vinci e atentar mais aos fins de sobrevivência (produto simples e funcional entregue, passível de ser corrigido e aprimorado rapidamente) do que aos meios (processo de design e desenvolvimento). Para ficar um pouco dentro da abordagem e quem sabe ajudar com reflexões, talvez seja prudente perseguir mais simplificações como a de Mondrian, abaixo, sem preconceitos e restrições:
Ou lembrar de Picasso, toda sua persistência na pintura até chegar ao estilo cubista que o consagrou, e de suas mulheres (ele teve várias, nas telas e na vida), tão importantes quanto a Mona Lisa, mas sem buscas platônicas ou renascentistas, que podem nos dizer muito sobre se estamos preparados para a adaptação ou se ainda somos apegados à busca por “padrões ideais”.
Indo além
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.