O alfabeto dos perfis de carreira em tecnologia
Origens dos perfis de carreira em “I”, “T”, “π”, “M”, “E”, “V”, “Y”, “X” e outras variantes, o que isso diz sobre trabalho em nosso tempo e o que é importante entre ser generalista ou especialista
Nosso cérebro adora classificações. Seja em função de heurísticas evolutivas, seja por causa da educação formal, estamos sempre tentando colocar objetos, outros seres vivos e ideias em categorias. Pode ser simplesmente para diferenciá-los, pode ser para criar rankings. Eliminamos uma porção de nuances da realidade a cada simplificação, mas também economizamos energia cognitiva com elas.
Uma dessas classificações é o perfil de carreira, algo que surgiu lá nos anos 80 e ganhou ênfase na indústria de tecnologia. O tipo de perfil que mais ganhou buzz é o “T-shaped” ou “perfil em T”. Há uma tonelada de marketing de conteúdo falando dos benefícios ou sobre como se tornar um “T”.
Observando-se com atenção, porém, descobre-se um “alfabeto” de outras categorias, derivadas do “T” ou bastante criativas, com objetivo de classificar perfis profissionais. Encontram-se, por exemplo: “I”, “M”, “E”, “V”, “Y”, “X”, até “–” (hífen ou traço), “π” (a letra grega pi) e perfis em forma de “pente”.
É claro que não se trata de uma pretensa taxonomia como a de Lineu ou uma tabela periódica de carreiras. Não há nada científico em dizer que alguém é “I” ou “T”. Tudo isso surgiu da necessidade de dar nomes aos talentos procurados por novos negócios e para facilitar a comunicação.
Porém, diante da abundância de informações, o que nasceu com intuito de simplificar e esclarecer, pode se tornar mais um fator de confusão a quem está entrando no mercado, buscando qualificação ou tentando se reinventar na carreira. Isso quando não causa ansiedade e síndrome do impostor, pelo fato de o profissional não se ver classificado em uma dessas categorias.
Vamos meter a colher nessa sopa de letras, entender de onde vem cada uma, o que nos serve e o que é importante reter de tudo isso. (Alguns diriam: não bastasse já termos de virar “unicórnio”, “jedi” ou “ninja” em várias técnicas — ou um Wolverine, capaz de fatiar qualquer problema e ainda se curar das pancadas que leva, mas, de preferência, sem a ranzinzice dele —, ainda inventamos todas essas letras para nos atormentar.)
Bê-a-bá da carreira
Ao que parece, referências a um “T-Shaped Man” já constavam em documentações da consultoria McKinsey & Company, para recrutamento e desenvolvimento de pessoas, na década de 1980.
O professor e pesquisador David Guest, especialista em recursos humanos, destacou o termo em relação à indústria de tecnologia em 1991, em um artigo publicado em The Independent (ainda na versão em papel), intitulado “The hunt is on for the Renaissance Man of computing” (“A caça ao Homem da Renascença na computação começou”, em tradução livre). Note-se a referência ao “Homem da Renascença” como um Leonardo da Vinci da computação — na época, não havia as especializações que existem hoje e tudo girava em torno de programadores.
Mas foi o CEO da IDEO, Tim Brown, quem catapultou o “T-Shaped” para a mídia. A IDEO é uma empresa referência em design, que popularizou o design thinking e o human centric design.
Por se tratar de um negócio em que a criatividade e a empatia contam muito (a IDEO presta serviço a outras empresas), havia necessidade de contratar profissionais que não apenas eram especialistas em uma área do design, mas capazes de transitar entre várias skills, principalmente as “softs”, como empatia, colaboração, negociação, entre outras.
Nas palavras de Brown, o perfil precisa ter “profundidade” e “amplitude”, as partes vertical e horizontal do “T”, respectivamente.
Isso ajuda a entender, por dedução, outros dois perfis: em forma de “–” e de “I”. O perfil em forma de traço é o que tem apenas a parte superior do “T”. É o clássico generalista, o “jack of all trades, master of none” (“pau para toda obra, mestre de ninguém”, em tradução livre), para usar um jargão da tecnologia. É a pessoa curiosa o suficiente para tentar solucionar problemas com criatividade (o que também pode ser sinônimo de “gambiarra”).
O perfil em “I”, por sua vez, é o clássico especialista, muito comum nos primórdios da computação, quando a área tinha uma grande influência da academia.
O estereótipo é o do nerd que domina poderes arcanos de uma linguagem de programação — para ficar em uma verdadeira lenda, a do sujeito que automatizou todo tipo de coisa, inclusive a cafeteira do trabalho —, mas que não se comunica com outro humano, não faz questão de entender do negócio e acredita que seu mundo é o “playground” da engenharia, ou seja, criar automações pelo prazer de criá-las.
A busca da Modernidade, principalmente dos séculos XIX e XX, sobretudo nas ciências, é uma história do “I”, da especialização. A vontade de compreender o cosmo, o planeta, os outros seres, os humanos, os minerais e a natureza das ideias, decompondo-os em partes cada vez menores, levou a uma inevitável fragmentação do saber. A tecnologia da informação praticamente expandiu essa fragmentação em mais um sem número de micro domínios.
Com a administração ganhando caráter mais “científico” após a Segunda Guerra Mundial, foi natural que a especialização também adentrasse áreas menos acadêmicas. Tanto que acadêmicos “puros” passaram a ser contratados para tentar resolver desafios que surgiam no mercado.
O livro “Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas” (no original, “Range: Why Generalists Triumph in a Specialized World”, de 2019), do jornalista David Epstein, é um ótimo apanhado dessa busca da humanidade por especialização, principalmente no século XX, e suas consequências, não tão vantajosas, no mundo mais volátil, ambíguo e incerto do século XXI. A publicação foca muito na educação e no treinamento, seja em habilidades, como esportes ou música, seja em conhecimento abstrato.
O que o perfil em “T” faz, em comparação com o “I”, é acrescentar essa camada de habilidades diversas, aprendizado menos linear, mais diversificado e, por que não, “caótico”, a uma especialidade já adquirida, fazendo com que o profissional consiga trabalhar com mais empatia junto a outras áreas.
Como a tecnologia da informação é a disciplina que molda e dita tendências sobre quase tudo o que vivemos hoje, seja em relação ao aprendizado, seja na prática, muito dessa busca pelo profissional “T-shaped” é associada ao mundo do desenvolvimento de software em suas origens. A comunidade agile amplificou bastante o conceito.
Como não se trata de algo científico, como já mencionado, houve quem encarasse o “T” como uma mistura de hard skills (conhecimento técnicos) com soft skills (habilidades de relacionamento), uma abordagem que parece mais atual. Por outro lado, há também quem veja o “T” apenas em relação a hard skills.
Sobre essa segunda abordagem, há muita discussão, por exemplo, sobre se um programador deveria possuir conhecimento aprofundado em uma linguagem de programação (o “I” contido no “T”) e formar a barra horizontal superior do “T” com outros conhecimentos técnicos, mas menos profundos, como protocolos de rede, segurança de sistemas, integrações etc. Algo bem específico do mundo da programação, como se pode ver.
Mais recentemente, com as áreas de negócio invadindo a tecnologia e a busca por perfis em “T” chegando a elas, há entendimentos de que o “I” do “T” seria um conhecimento mais técnico (hard skill), enquanto a parte superior do “T” conteria mais capacidades de relacionamento e liderança.
Para um profissional de RH, por exemplo, o “I” seria conhecimento especializado em remuneração e progressão de carreira, com a parte superior do “T” contendo habilidades de negociação, comunicação, empatia e talvez uma ou outra noção mais técnica, como legislação sobre gestão de pessoas.
Quão alto seria o “I” do “T” ou quão largo seria sua parte superior — formas de “quantificar” amplitude e profundidade do conhecimento — é uma questão praticamente não abordada. Talvez porque conhecimento é algo impossível de se medir, pelo menos com as ferramentas que temos.
O “T” abre brecha para o surgimento de uma gama de outros perfis em forma de letras. Alguns são um desdobramento óbvio dele. Outros parecem mais insights, estalos mentais, do que racionalizações.
O primeiro desdobramento é o “π”, o número 3.14159… da matemática ou letra “pi”, do grego.
É fácil entender. É um “T” com duas especialidades, um indivíduo com conhecimento aprofundado em duas disciplinas. Também se origina na engenharia de software. Com o avanço da disciplina, a divisão entre profissionais de front-end (tecnologias de interface com o usuário) e back-end (tecnologias de lógica de negócio e banco de dados) e o surgimento do conceito de “full stack” (o profissional que conseguia programar uma aplicação inteira), começou-se a discutir a necessidade de especialização em mais de uma skill técnica.
Não faltam “π” com uma perna mais curta e outra mais longa nessa discussão ou “π” com a parte superior mais larga que o comprimento de suas “perninhas”, na tentativa de ilustrar a sempre difícil quantificação do conhecimento.
No dia a dia da engenharia, até faz sentido pensar em perfis do tipo. Com problemas cada vez mais complexos, nem sempre há como contratar um novo especialista, comprar uma solução pronta ou treinar alguém da equipe para que seja um “ninja” de um determinado framework, por exemplo. O jeito é as equipes se virarem com o que têm à mão e agregarem especializações à medida que avançam em problemas.
Entretanto, se um faz-tudo que hoje mergulha na tecnologia “x”, amanhã na “y” e depois na “z” pode ser considerado nessa classificação, é uma discussão em aberto. De novo, o problema da quantificação de conhecimento.
Parece mais comum que profissionais de outras áreas, até pela migração que tem havido de áreas tradicionais para novos negócios, enquadrem-se mais facilmente no perfil em “π”.
Pode ser o psicólogo com uma carreira voltada para orientação e que, por seu conhecimento aprofundado em escuta e mediação, acaba dominando customer success. Pode ser o especialista em marketing (não apenas marketing digital, mas marketing como Philip Kotler ensinou) que migra para gestão de produto e se dá bem na área. A proximidade das áreas, obviamente, facilita a adaptação.
Em certo sentido, nas startups, product managers, product designers, tech leads e profissionais de dados meio que estão se tornando “π” por força do negócio.
Gestores de produto são casos de “π” com a parte superior talvez mais larga que as duas “perninhas”, uma delas em marketing e a outra em aspectos da gestão de projetos, digamos.
Designers de produto são híbridos capazes tanto de estruturar e embelezar interfaces quanto de pesquisar comportamento de usuários.
Um tech lead talvez esteja careca de saber a stack técnica utilizada pelo time, mas reúne um forte de treinamento de novos profissionais.
Um profissional de dados acaba tendo de validar a parte estatística de modelos, um trabalho bastante técnico, ao mesmo tempo que possui boa comunicação verbal e visual para demonstrar os resultados a quem não é da área.
É o atual “lifelong learning” (“aprendizado ao longo da vida”). A especialização não precisa mais ser aprendida e aprofundada antes de ser aplicada, mas pode ser feita na prática, uma das formas mais eficientes (no sentido de otimizada) de aprender e aplicar conhecimento.
Ficou fácil entender a letra “M”, acima. É um “π” com uma especialização a mais. Parece ser o futuro de muita gente daqui em diante, com o lifelong learning se tornando imperativo.
O perfil em forma de “pente”, a seguir, é uma ampliação de “π” e “M”. Mais especialidades somadas. É como se o generalista ampliasse a amplitude de conhecimentos e pegasse vários desses conhecimentos e os aprofundasse. Parece mais uma consequência das exigências dos negócios atuais do que um caminho a ser essencialmente planejado de antemão.
Agora ficou mais fácil ainda. Então, o “E” poderia ser um “pente” girado em 90 graus, não?
Não. O “E” surgiu de um conceito de profissional que detém quatro “Es”, do inglês: “experience, expertise, exploration and execution” (“experiência, conhecimento, exploração e execução”, em tradução livre).
Para puristas, talvez seja uma heresia ao “T”, porque há pouca correspondência com amplitude e profundidade de domínios. A partir do “E”, será comum se os conceitos parecem mais “místicos”.
O “E-shaped” tem ganhado menções como uma evolução do “T” em ambientes de inovação, embora pareça mais hobby de quem gosta de classificar skills profissionais. Basicamente, a “perna” vertical do “E” significa “experiência” e as três “pernas” horizontais significam “expertise”, “execução” e “exploração”.
O conceito é de Sarah Da Vanzo, uma consultora de liderança, e já tem quase dez anos. Discussões sobre devops (profissionais que cuidam da infraestrutura e de software técnico sobre a qual a tecnologia de um negócio roda) adotaram a classificação, pela gama de habilidades e conhecimentos que um profissional do tipo precisa ter.
É um conceito que tem algum buzz e pode voltar à tona, mas que também foge à ideia de amplitude versus profundidade do perfil em “T”.
O perfil em “V” vem de “versátil”. Há bem menos material sobre essa metáfora de carreira do que o “I” ou “T”, mas postagens de 2011 já citavam essa busca em arquitetura de software, por exemplo.
Esse perfil seria um “T”, mas cujo conhecimento vai se alargando à medida que se aprofunda. Também é uma analogia que permite entender que você aprofundará a barra superior do “T” conforme se especializa na parte vertical da letra.
Alguns criticam que a visão ainda é de um “I”, o especialista clássico, em essência, com a diferença de ter começado em caminhos diferentes.
O perfil em “Y” é uma variação do “V” com filosofia a mais — não confundir com a progressão de carreira em “Y”, que seria um “Y deitado”, em que o profissional parte de um caminho técnico e, depois, tem uma escolha entre seguir como especialista ou em cargo de gestão.
“Y” também é um “T” sofisticado, digamos. Há quem considere que uma das hastes superiores do “Y” seriam competências mais “soft” e a outra, competências mais “hard”, que posteriormente se encontram para formar um profissional completo.
Um paper de uma universidade da Suíça, de 2017, chega a propor isso como grade curricular para design, para se ter ideia.
Por outro lado, há quem entenda a metáfora como se o profissional começasse por caminhos diversos (as hastes superiores) e convergisse para seu propósito de vida (a parte inferior do “Y”).
O perfil em “X” parece um “V” ou “Y” (pode dar a entender que a pessoa começou por caminhos diferentes, convergiu e, depois, divergiu), mas é outro caso como o do “E”. O conceito vem ganhando força em relação a perfis de gestão.
A explicação mais encontrada é que uma das hastes do “X” reuniria conhecimentos de especialista e a outra haste, conhecimentos de execução e liderança. Como se o “T” fosse desmontado e se formasse um “X” com ele.
Parece depender depender mais de fé do que racionalização. Não considera amplitude e profundidade e o foco parece recair sempre no encontro das hastes do “X” — o “cross-domain” —, como se ali residisse uma grande revelação ou potencial da carreira.
Outro animal mitológico?
É uma viagem pitoresca tentar enxergar trajetórias de carreira em formatos de letras ou hieróglifos indecifráveis. Como se a vida fosse “perninhas” de “T” e jamais fugíssemos da tentação de achar que o futuro é linear: basta ser bem planejado e seguir o plano para que se chegue ao “sucesso”.
Isso nos leva àquela que é a grande busca de todo esse alfabeto de carreira e desenvolvimento: o desejo de medir conhecimento e, mais do que isso, de saber mais, se possível “tudo” — o que sugere outro símbolo:
A imagem pode ser associada a um nome. Não é “quadrado”, é claro. Também não é mais uma letra ou um conjunto de traços.
Trata-se de uma palavra que soa estranha e é usada para intitular pessoas do Renascimento e do Iluminismo, e que alguns sugerem (ou previnem), atualmente, que se tornará um novo hype em breve: “polímata”. Leonardo da Vinci, já citado, é o arquétipo disso.
Polímata é aquela pessoa que entende profundamente de matemática, física, química, biologia, engenharia em geral, astronomia, sabe um punhado de línguas e toda a etimologia de suas palavras, conhece os cinco continentes e os sete mares.
Além disso, escreve literatura, poesia, tratados de direito e economia, ocupa um cargo no Senado e talvez governe uma cidade, além de ser uma dama ou cavalheiro muito bem apessoado em que todos se inspiram, ou seja, ainda por cima é uma “celebridade” (nos dias atuais, ainda teria de ser fundador de algumas startups unicórnios, gerir um bilionário fundo de hedge e ter uma seita de seguidores). Profissionais “unicórnios” parecerão pobres “mulas” perto de um ser desses.
Enquanto psicólogos cognitivos e neurocientistas não encontram uma forma de quantificar o conhecimento, melhor se prevenir a novas modas e ser realista: uma pessoa que detenha todas essas qualidades provavelmente estará no topo da cadeia social e perfis de carreira serão passatempo para quem trabalhar a ela.
O que interessa da sopa de letras
É pretensioso cravar listas de conselhos sobre os melhores caminhos para o desenvolvimento de carreira ou da própria vida.
Há quem venda fórmulas prontas como se fossem a última palavra no assunto. Há quem acredite, às vezes por experiências dolorosas, que a vida é uma caixinha de surpresas e é melhor aprender e reagir conforme as situações se apresentam, em vez de tentar aprender algo antes de pôr em prática.
Todos temos interpretações e, talvez, narrativas sobre o que funciona ou funcionou para nós (o que não significa que funcionará para outros e no futuro).
Alguns têm chances de seguir um caminho linear desde a juventude e lamentam as escolhas (a história do tenista Andre Agassi, um dos maiores campeões de todos os tempos, que declarou “odiar o tênis”, é um exemplo). Outros escolhem caminhos diversos, podem se deter em um deles por algum tempo, depois migrar a outro, por escolha ou por consequências do mercado, da economia, da própria vida, e lamentar não ter se especializado.
Ora parece que o mercado, de fato, exige ultraespecialistas, e o indivíduo jamais preencherá a profundidade que a vaga de emprego cita. Ora, parece que requer o “jack of all the trades”, e que o indivíduo jamais terá a amplitude desejada. Ora, para piorar, a sensação é que as duas coisas são exigidas juntas.
O que ajuda é olhar o quadro completo, não se deter em “Ts”, “Xs” e outras letras reverberadas e considerar o longo prazo. Isso permite enxergar três tendências para as quais mercados e empresas estão se deslocando:
negócios atuarão cada vez menos em mercados lineares como no passado, em que bastava fazer um grande plano e segui-lo; o mundo se tornou mais complexo e volátil, com forte concorrência e grandes chances de “mortalidade” corporativa, e empresas terão, cada vez mais, de ser organismos com grande flexibilidade e capacidade adaptativa — “darwinismo corporativo”, em resumo;
a tecnologia da informação (e tudo o que ela traz consigo, como dados, análises quantitativas e automação) deixou de ser um silo, um departamento funcional separado do núcleo da empresa, para se tornar um pilar central do negócio, o que requer um entendimento de todos os envolvidos sobre as possibilidades, complexidades e restrições que ela carrega — já intuímos o poder que a máquina nos dá, precisamos saber consolidar e traduzir nossas ideias (fluídas, fugidias e infinitas) em construções precisas e concretas que a máquina seja capaz de processar e operar, o que está no cerne de muitas questões de comunicação atuais;
indivíduos atuando isolados ou semi-isolados, ainda que reunidos sob um mesmo ambiente ou escopo, têm pouco poder de operar diante dos cenários apresentados nos itens “a” e “b”; negócios baseados em times multifuncionais (squads, por exemplo), capazes de se autogerir e se reorganizar frente às situações, porém alinhados e inspirados por uma forte narrativa unificadora (visão), têm mais chances de permanecerem relevantes.
Isso ajuda a pensar melhor os conhecimentos que indivíduos, times e empresas inteiras precisarão desenvolver.
Mudança de cultura e de mentalidade (mindset) frente ao novo cenário (complexo e incerto) é fundamental para enfrentar os desafios que surgem.
Não é algo simples, que um indivíduo aprenda sozinho, em um fim de semana. É algo que terá de começar já na educação regular de crianças e adolescentes e que as empresas terão de continuar (é até possível que em algum momento torne-se mais viável trazer pessoas com pouco conhecimento e formá-las para o negócio do que esperar que venham com toda uma carga a priori de conhecimento, como de graduações ou pós-graduações).
Também é importante enxergar que uma das melhores escolas para essa adaptação e flexibilidade, a tão comentada “antifragilidade”, são as adversidades, as situações em que há riscos reais de perda. Por isso, praticar em batalha, fazer repetidamente “a quente” e a longo prazo, mais do que se preparar para “um dia fazer”, acelera e consolida aprendizado.
É claro que só aprender na dor e transformar danos em oportunidade para ficar mais forte não são suficientes. É necessário saber lidar com a máquina e o que ela possibilita.
Independentemente da disciplina que o indivíduo escolher para se aprofundar, seja administração, recursos humanos, design, logística, jurídico, marketing ou estatística, por exemplo, praticamente todas elas serão cada vez mais executadas em parte ou no todo por máquinas que trabalham com precisão e exatidão em sua essência.
Conhecer a máquina, o que ela permite e as formas de extrair o melhor dela são capacidades inegáveis em qualquer especialização técnica. Facilita traduzir ideias em soluções, entender restrições e se familiarizar com um mundo mais preciso e quantitativo, importante em uma realidade movida por dados.
Aqui, pode parecer que a pessoa tenha de se preparar durante cem anos para começar a atuar. Não. O caminho é ir o mais rápido possível para a prática deliberada e aprender com a realidade. Otimiza a jornada e evita que se aprenda conteúdos que logo possam estar obsoletos.
Há necessidade de se especializar mais em um tópico para um problema específico? Ótimo, mergulhe-se nele ou agregue-se pessoas mais avançadas no domínio, sabendo se comunicar com elas. Essa abordagem pode levar muito mais naturalmente ao perfil em forma de “pente” do que planejamento e treino exaustivo em teoria.
Por fim, tudo o que se tem falado sobre soft skills, empatia e comunicação diz respeito a relacionamentos. É inviável memorizar, treinar ou simular relacionamentos. É um aprendizado que depende, fundamentalmente, de prática.
Qualquer função que envolva persuasão, negociação, facilitação, colaboração ou gestão — e isso não acontece só entre níveis hierárquicos diferentes, mas também entre colegas; e Product Management e UX Design requerem muito disso — diz respeito, basicamente, a relacionamentos entre humanos.
Como relacionamentos humanos são extremamente complexos e imprevisíveis (e essas características aumentam exponencialmente conforme o número de pessoas e processos envolvidos), requer pelo menos um acordo do grupo para que se busque respeito, permitam-se trocas e haja apoio mútuo, além de alguns mecanismos para gerir impasses e crises.
É curioso notar que um dos principais pontos que muitas vezes dificulta o relacionamento nem sempre são emoções dos participantes, mas o confronto entre dois elementos já comentados: a precisão e exatidão que a tecnologia e os processos racionais impõem versus a adaptabilidade e a flexibilidade que negócios necessitam.
Resumindo, entender negócio, tecnologia — ao menos, o suficiente para se comunicar a respeito —, abrir-se a relacionamentos e desenvolver antifragilidade emocional são os “conhecimentos” que perfis profissionais terão de agregar cada vez mais.
Não se trata de uma preparação a priori para uma execução a posteriori, mas de um aprimorar-se e executar simultaneamente durante a jornada.
Algo bem difícil de encaixar em uma única letra do alfabeto ou em algum hieróglifo imaginário, embora não seja de se duvidar que logo surja algum pictograma cuneiforme, um glifo asteca ou algum hanzi do mandarim tentando sintetizar tudo isso.
Talvez um perfil de carreira se pareça muito mais a uma babel de caminhos, com começos e recomeços, idas e vindas, atenção e esquecimentos, do que a limitadas e lineares letras de um alfabeto.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.