A visão de produto e design do fundador do WeChat
Como o recluso Allen Zhang, preocupado com utilidade e estética minimalista, avesso a anúncios e consumo de atenção, gerencia o super app acessado, atualmente, por 1,2 bilhão de usuários/mês
“Antes de perceber o WeChat como um produto comercial, prefiro imaginá-lo como uma obra de arte impressionante.”
Em um mundo globalizado e com práticas de mercado homogeneizadas, não é todo dia que encontramos visões originais, que fogem ao mainstream e soam pouco convencionais. À medida que mais práticas da tecnologia se consolidam, é mais cômodo seguir a receita, o que outros estão falando, do que ter a coragem de dispensar convenções, acreditar no feeling e apostar alto, com os riscos envolvidos. Não é à toa que o iPhone já tem mais de década e parece que nada tão inovador foi lançado depois.
Essa é a sensação até conhecermos a visão de produto e design de Allen Zhang (Zhang Xiaolong “Allen”), o fundador e presidente do WeChat (Weixin, em mandarim), o “super app” chinês, visualmente similar ao WhatsApp, do qual boa parte de seus 1,2 bilhão de usuários praticamente dependem, todos os dias, para viver no país mais populoso do planeta.
Do delivery de comida ao agendamento de consultas médicas, do acesso a serviços públicos à movimentação de dinheiro, de “jornal” matinal a comunidade virtual, quase tudo pode ser resolvido e vivido por meio do app, sem a necessidade de instalar um ícone para cada uma dessas necessidades no smartphone, como ocorre no Ocidente. A criatividade de usuários foi além e permitiu até a emissão de carteira de identidade digital ou a possibilidade de litigantes conversarem com juízes em processos judiciais, por meio do aplicativo.
Mas o que mais chama a atenção na gestão do produto são as decisões de Zhang, que refletem em sua usabilidade e aparência. É uma personalização clara dos valores do fundador, que prefere olhar para a interface como uma “amiga” do usuário e não como uma vitrine para exibição de anúncios e comércio de atenção.
“Você passa mais tempo com sua família e amigos ou com o WeChat? Se o WeChat fosse uma pessoa, certamente seria o seu melhor amigo. É por isso que você está disposto a gastar tanto tempo nisso. Então, como eu poderia colocar um anúncio no rosto do seu melhor amigo? Cada vez que você o visse, você teria que assistir a um anúncio antes de poder falar com ele.”
Aos mais apegados aos aspectos de receita e lucro de produtos, pode parecer conversa para boi dormir. Aos que advogam por design centrado no usuário (no caso, um bilhão deles), porém, pode soar como lufada de ar fresco, em tempos de estratagemas para prender o usuário na tela, induzi-lo a comprar, causar-lhe ansiedade, “FOMO” e disparar outros gatilhos mentais.
O WeChat não tem notificações de que uma mensagem foi lida, como no WhatsApp, por exemplo. Para Zhang, isso causa ansiedade e obrigação de leitura. “Vai contra minhas crenças”, diz, uma frase que costuma repetir. A tela inicial do app tem quatro botões que, apesar de sugestões e pedidos, Zhang não muda: “Bate-papo”, “Contatos”, “Descobrir” e “Eu”. Ele acredita no minimalismo e pensa que cada pequeno incremento cria complexidade ao desenvolvimento e ao usuário, e, no caso do WeChat, lembra que estes são dos mais diferentes níveis sociais e culturais.
Para se ter ideia, o ícone do app nunca ganhou um chapéu de Papai Noel ou as cores de alguma campanha, como a de um Outubro Rosa ou de um Novembro Azul (na China, costumam colorir os apps de amarelo e vermelho em homenagem ao Ano Novo Chinês, segundo ele). Mas o mais surpreendente são os anúncios. Zhang defende a quase ausência de propagandas na tela. Tanto que uma das funcionalidades, o “WeChat Moments”, uma linha do tempo como de outras redes sociais, exibe, no máximo, de um a dois anúncios por dia.
“O objetivo em toda a indústria tem sido dar o melhor de si para manter os usuários em seus aplicativos o máximo possível. Isso vai contra minhas crenças. Um usuário tem tempo limitado em um dia, então essa meta de maximizar o tempo do usuário é secundária. O principal objetivo da tecnologia deve ser ajudar a humanidade a aumentar a eficiência.”
Isso mesmo. Com mais de um bilhão de usuários acessando recorrentemente o app para resolver vários aspectos da vida, Zhang resiste a explorar o potencial publicitário do app. Ele cita o Internet Explorer e a página 404 (página de erro, exibida quando um endereço da web não é encontrado):
“Na época do PC, qual página tinha mais visualizações? A resposta é a página de erro 404 [...] Por que a Microsoft não colocou um anúncio na página? Por que o WeChat não coloca um anúncio em sua página inicial?”, questiona, deixando reflexões no ar.
Só a funcionalidade “Moments” tem acesso diário de 750 milhões de pessoas, os quais abrem a funcionalidade dez vezes por dia, em média. Multiplique-se e o tráfego é astronômico. Mesmo assim, Zhang acha que o próprio “Moments” trouxe efeitos colaterais, como aumento de “estresse” a usuários por causa da exposição.
“Se eu pudesse voltar no tempo e tivesse a chance de fazer Moments novamente, tornaria o álbum privado”, diz, fazendo mea-culpa.
Obviamente, uma hora o negócio bate à porta do design e cobra a conta. Há rumores de que Zhang tem sofrido embates dentro da Tencent, a gigante de tecnologia que detém o WeChat, por causa de sua visão, principalmente depois que a concorrente Byte Dance, a startup mais valiosa do mundo em anos recentes, dona do TikTok, passou a ser uma ameaça no filão de anúncios digitais.
Por outro lado, o WeChat parece ter cedido à busca de oportunidades de receita, como com o “Official Accounts”, páginas para empresas, e o “Mini Programas”, API que permite que outros desenvolvedores subam miniaplicativos ao WeChat, criando uma forte plataforma que permite explorar desde apps de anúncios a lojas virtuais.
As iniciativas se parecem um pouco com as de apps de varejo do Ocidente, do Shopify ao Mercado Livre, que disponibilizam ambientes para parceiros exporem e comercializarem produtos. A diferença é que o WeChat não só centraliza o front-end, mas permite subir back-end de aplicações e ainda operar transações financeiras por meio do WeChat Pay ou entregas por meio de suas funcionalidades de delivery. Ou seja, abocanha toda a cadeia de pequenos negócios de varejo.
Mesmo assim, Zhang incluiu o novo braço do negócio dentro de uma visão e não esconde preocupações que, segundo o acusam, vêm de seu perfeccionismo e microgerenciamento.
“Se você apenas deseja pegar o Mini Programas emprestado como meio de lucrar com o tráfego, não sou otimista. Coisas que beneficiam a si mesmo, mas não aos outros, não duram. [...] A missão dos Mini Programas é permitir que os criadores cultivem valor e se beneficiem dele.”
“Não temos pressa para terminá-lo [o Mini Programas]. É um ecossistema, não uma função B2C, portanto, temos sido pacientes, alimentando-o lentamente. [...] Continuaremos pensando em maneiras de tornar o Mini Programas mais acessível aos usuários. Mas não espere que façamos algo agressivo e frustrante a eles.”
O jeito ao mesmo tempo “artístico” e “espartano” de olhar para o negócio, com um foco declaradamente pró-usuário, tem sido objeto de especulações e até de alguns estudos sobre gerenciamento e liderança.
Como alguns deles mostram, a própria história pessoal de Zhang, as particularidades do mercado consumidor chinês e a política econômica de Pequim ajudam a entender por que o WeChat é o que é e por que um estilo de gerenciamento de produto e design tão peculiar persiste e alcançou “sucesso”, palavra da qual, para variar, Zhang também não gosta.
Um “perdedor social”
Zhang é conhecido como uma pessoa discreta e reclusa. Aparece raríssimas vezes, sabe-se pouco de seu passado (em compensação, especula-se um bocado) e, absolutamente, não tem talento para empreendedorismo de palco, nem para ser guru ou fazer belos discursos motivacionais, como muitos gerentes de produtos e fundadores ocidentais.
Ele nasceu em 1969, em uma família de camponeses, como grande parte dos chineses. Teria sido um leitor ávido na infância e foi influenciado por interpretações da psicanálise de Freud (acredita que o sexo é uma força motriz da natureza humana). Formou-se em Ciência da Computação em 1994, em uma universidade chinesa, e foi um programador pioneiro da Internet no país. Criou o Foxmail e, depois, o QQMail, uma espécie de Gmail chinês. Conta-se que após vender a primeira empresa já para a Tencent, em 2000, teria comprado um carro, viajado ao Tibet e sumido do mapa por cinco anos.
Outros especulam que continua solteiro, fuma muito e costuma varar madrugadas acordado. Odeia reuniões de negócios e faz de tudo para fugir delas, como ele mesmo diz. Sua válvula de escape seria o golfe. Em 2018, venceu em duplas, como amador, o Alfred Dunhill Links Championship, o torneio mais antigo, “pitoresco” e desafiador da Escócia, conforme descrição da própria competição.
Zhang lembra em alguma coisa a obstinação de Linus Torvalds, tão recluso quanto. Mas, ao contrário do finlandês, criador do Linux — que não se define como “visionário” e, sim, como “engenheiro”, mais preocupado em olhar ao chão do que às nuvens —, Zhang está mais para um arquiteto social, um filósofo do design centrado no usuário ou um escultor da tecnologia.
“A maioria dos fundadores em todo o mundo é movida pelo desespero que sente ao se olhar no espelho. Sou um perdedor social, então, para surpresa de todos, criei software social.”
Mesmo assim, nas poucas vezes em que se dispõe a se expressar, com uma economia impressionante de gestos e expressões, mãos nos bolsos e fala monótona, parece ter produzido mais frases de efeito sobre sua visão original do que muitos outros, em anos recentes.
Uma dessas ocasiões é o discurso de quatro horas na conferência oficial do WeChat de 2019, quando rebateu críticas à sua maneira de conduzir o produto, falou dos oito anos do aplicativo, citou — ao seu estilo, sem comemorar — a marca de um bilhão de usuários diários (apesar de relatórios da Tencent citarem um bilhão de usuários/mês) e falou de toda sua visão acerca do design para pessoas, da sua aversão à comercialização e ao marketing, de suas “teorias” da comunicação, comportamento e interação social, além de mencionar sorte (parece considerar muito o acaso) e esperança (gosta de pensar em pessoas de baixa instrução e com deficiência que precisam usar o aplicativo).
“Sinto-me [...] sortudo por, ao longo desse processo, ter sido capaz de incorporar minha perspectiva de mundo no produto [...]. Isso é [...] raro.”
Em 2020, ele não apareceu na mesma conferência (especula-se que por causa da relação com a Tencent), mas gravou um vídeo, em que falou da privacidade de usuários, acesso passivo, disseminação de informação e complexidade de relações sociais. Segundo ele, a não participação foi “intencional”.
“Eu escolhi não aparecer intencionalmente. Lembre-se do primeiro evento aberto, eu costumava dizer que participar de várias reuniões pode ser uma perda de tempo.”
A aversão a reuniões e outras idiossincrasias de sua personalidade ficam mais evidentes em garimpos que fãs fizeram de seu pouco conhecido passado. Algumas de suas postagens, recuperadas de uma rede social chamada Fanfou, uma espécie de Twitter, que Zhang alimentava desde antes da criação do WeChat, em 2010, tem desde passagens poéticas até provocações.
“Quantas funções devem ser adicionadas até tornarem um produto inútil?” (Novembro/2010.)
“Cada vez que vejo a palavra ‘sucesso’ em nosso produto que indica ‘xx operação foi concluída com sucesso’ e ‘mensagem foi enviada com sucesso’, isso me intriga. [...] A palavra ‘sucesso’ não pode mais aparecer no produto. Sou obcecado pela palavra limpeza, então ainda sou louco por isso. ‘A mensagem foi enviada com sucesso’ parece que ainda é uma mensagem sem sucesso.” (Janeiro/2021.)
“Um produto é uma relação com o utilizador, caso contrário é apenas uma transação comercial. Que tipo de fraternidade são as pessoas de produto?” (Agosto/2011.)
“Entreviste o gerente de produto. Depois que todas as habilidades forem qualificadas, pergunte: você gosta de rock and roll? Se a resposta for não, esqueça.” (Setembro/2011.)
“A maioria das chamadas inovações são apenas para complicar o problema.” (Novembro/2011.)
Outras citações bem mais recentes ajudam a entender seu jeito, modo de pensar e de conduzir o WeChat. Em uma entrevista a pesquisadores da London Business School, por exemplo, declara:
“Quando estamos tentando criar algo radical, um processo de baixo para cima o destruiria. Os usuários precisam receber um conceito extremamente claro com informações precisas — e isso precisa de um único arquiteto.”
“Passo a maior parte do tempo em reuniões. [...] Tenho que participar de reuniões de gestão, quando o RH ou o Financeiro me querem. Pessoalmente não gosto deles, mas tenho que aparecer. O outro tipo são reuniões sobre nosso produto, que prefiro muito mais. Gosto de me sentar junto com todos, verificar novos recursos ou otimizar o produto.”
“A única coisa que gostaria muito de ver depois de deixar este cargo — meu sucessor precisa ter uma personalidade distinta, para guiar o produto do seu próprio jeito, em vez de seguir cegamente os outros.”
Grand Design e as circunstâncias
Os pesquisadores da London Business School realizaram um rico trabalho ao entrevistar Zhang e outros 11 executivos do WeChat, o que rendeu transcrições das falas do fundador e artigos tentando desvendar a tese de crescimento e sucesso que o aplicativo teve desde sua criação, em 2011.
A conclusão a que eles chegaram é que, diferentemente de muitas empresas de tecnologia ocidentais, sobretudo em anos mais recentes, em que os CEOs acabam mais envolvidos com a gestão do negócio, o WeChat carrega um forte envolvimento de Zhang no design e no desenvolvimento do produto desde seus primeiros dias, quando uma equipe de dez programadores, em uma “sala escura”, em Guangzhou, liderados por Zhang, colocou o software de pé (na época, um comunicador instantâneo) em 70 dias.
“Quando Kik [outro aplicativo de mensagens] foi lançado, percebi que havia uma oportunidade — essa oportunidade não surgiu necessariamente apenas do Kik como produto, mas veio de eu começando a usar um smartphone e da falta de boas ferramentas de comunicação em muitos produtos para PC e programas de mensagens. Meu pensamento era muito simples naquela época — eu queria fazer uma ferramenta de comunicação para mim e outras pessoas usarem. Coincidentemente, tínhamos uma equipe desenvolvendo uma versão móvel do QQMail, então montamos uma equipe de dez [pessoas] para começar a trabalhar no WeChat. Incluindo desenvolvedores de back-end, três desenvolvedores de front-end para dispositivos móveis, UI, eu e um recém-formado em minha equipe, dez pessoas no total. Em dois meses, criamos a primeira versão.”
Os pesquisadores associaram o modelo de gestão à tese do Grand Design, um estilo ou metodologia em que algo é projetado e concebido por meio de uma forte visão, vertical e hierarquizada em uma única pessoa ou em um conselho restrito, com poder de decidir e vetar (ou seja, “top-down”) as características do produto.
“Nossa pesquisa sugere que o sucesso do WeChat não foi alcançado por meio de superioridade tecnológica. Foi construído com base na visão — ou grand design — de Allen Zhang [...]. Ele liderou pessoalmente todo o esforço de desenvolvimento do WeChat, assumindo a responsabilidade pela aparência geral do produto, bem como supervisionando as equipes de codificação”, opinam os pesquisadores.
Embora essa abordagem tenha recebido críticas, os pesquisadores escreveram na Harvard Business Review que a tese do Grand Design se diferencia do Design Thinking, um processo mais horizontal de exploração e tomada de decisão. Nas comunidades de design e produto atuais, principalmente com a ascensão do “discovery” (“descoberta” de produto), o Design Thinking se consolidou como padrão, o “estado da arte” da investigação de problemas e proposição de soluções.
Mas, nesses mesmo círculos, não é incomum encontrar referências e menções, não raro apaixonadas, a um ícone inconfundível do Grand Design: a Apple de Steve Jobs. Suas frases, encontradas em muitos conteúdos sobre inovação, são uma mostra do estilo:
”As pessoas não sabem o que querem até você mostrar a elas.”
“Estamos apostando na nossa visão. Preferimos fazer isso a fabricar produtos iguais aos outros. Vamos deixar outras empresas fazerem isso. Para nós, o objetivo é sempre o próximo sonho.”
Por ter surgido logo após a chegada do iPhone e a disseminação dos smartphones no mundo, o WeChat carrega muito dessa visão da Apple de Jobs, que estava em seu auge na época (o WeChat foi fundado em 2011). O detalhe é que, diferente do “jeitão” conhecido de Jobs, intransigente e despótico, Zhang parece muito mais um membro humilde mas perseverante do time que montou, e também muito intuitivo e sensível às particularidades da sociedade chinesa.
Um exemplo, segundo os pesquisadores, seria seu pedido de que o time se coloque no lugar de “usuários burros” (menos sofisticados, analfabetos tecnológicos) e a própria capacidade de Zhang de entrar e sair desse modo. A preocupação com acessibilidade também é ressaltada.
O que é possível interpretar das entrevistas e artigos escritos pelos pesquisadores, além da biografia de Zhang, é que o WeChat parece muito mais uma organização em que o design comanda o negócio do que o contrário (alguns designers e gestores de produto sonhariam em trabalhar em um lugar assim). Há os rumores, é claro, dos embates com a Tencent, mas pelo menos nos últimos dez anos a abordagem tem funcionado.
O design, na visão de Zhang, não seria apenas uma série de práticas acessórias ao negócio, para deixar o produto mais “vendável”, mas uma série de princípios e preocupações e o acompanhamento do ciclo de criação do produto ou de uma funcionalidade, a fim de torná-lo útil e usável pelas pessoas, nos mesmos moldes de Dieter Rams, em que Zhang se inspira. O produto, em resumo, é o negócio.
“Fico muito feliz por poder acompanhar um produto por oito anos. Além disso, sempre me considerei um gerente de produto, não um gerente de negócios.”
A biografia de Zhang mostra a personalidade de um maestro regendo toda a cadeia de concepção e desenvolvimento de um produto.
“Para criar um produto excelente, acho bom ficar obcecado por ele.”
“Acredito que isso [o criador ser um gerente de produto, não um gerente de negócio] seja necessário, porque um bom produto requer um certo grau de 'ditadura', caso contrário, ele irá incorporar todos os tipos de opiniões diferentes e conflitantes e sua personalidade se tornará fragmentada.
Conforme os pesquisadores da London Business School, o WeChat nasceu de uma competição com outras equipes dentro da Tencent, para ver quem propunha um aplicativo de mensagens móvel na gigante de games chinês. O próprio Zhang reflete que poderia nunca ter tido a oportunidade se não tivesse mandado um e-mail que levou àquele processo e resultou no lançamento do WeChat, em 14 de janeiro de 2011, inicialmente como mensageiro de texto.
A partir daí, vieram os sucessos sequenciais e massivos, creditados mais à visão de mercado e feeling do fundador e à excelente equipe que montou do que a processos, ferramentas e metodologias importadas. Como Lake Zeng, um executivo sênior do WeChat, declarou: “Estratégia é um conceito muito distante [no WeChat]. Nossa atenção está voltada para os problemas que os usuários encontram. Utilizamos todos os métodos necessários e razoáveis para satisfazer suas demandas.”
Um fator a ser reconhecido é que o bloqueio da China a aplicativos ocidentais deixou simplesmente a maior população e o maior mercado consumidor do mundo à disposição da criatividade de Zhang e de seu time, entusiasta do fundador. O incentivo do governo de Pequim à tecnologia nacional e uma menor regulamentação em relação ao Ocidente também contaram como “vantagens injustas”.
Tirando o início, em que competiu na própria Tencent, logo o WeChat logo passou a reinar absoluto nas mãos de um número crescente de chineses ávidos por novidades e, não só isso, por soluções para seu cotidiano peculiar.
O WeChat Pay, combinado com o uso do QR Code, por exemplo, ganhou contornos especiais no contexto chinês. Primeiro, boa parte da população era desbancarizada. Permitir movimentar pequenas quantias de dinheiro entre contas ajudou a inserir pessoas no sistema financeiro. Segundo, essa parcela da população também tem baixa instrução, muitos mudaram de uma vida no campo para as cidades há pouco tempo.
O QR Code eliminou um bocado de fricção a esses usuários. Em vez de preencher formulários, entender termos ou acessar manuais de uso, bastava apontar a câmera para um código, saber minimamente do que se tratava e pagar qualquer coisa com um gesto — inclusive as compras nas barraquinhas das feiras, muito comuns na China.
Com mais gente incluída na plataforma, não foi difícil alavancar outras utilidades, do delivery ao agendamento de táxi, de compras a serviços da Covid. A facilidade de ganhar o mercado da noite para o dia foi proporcional ao crescimento da comunidade de usuários. Nesse ponto, houve vantagem de não se afobar e planejar os passos.
“Naquela época [fundação do WeChat], tínhamos um princípio: se um novo produto não pode crescer naturalmente, não devemos comercializá-lo. Portanto, nos primeiros cinco meses, não o promovemos; estávamos esperando para ver se os usuários seriam atraídos pelo WeChat, se eles próprios o promoveriam. Se os usuários não estivessem dispostos a fazer isso, qualquer marketing que fizéssemos não teria sentido.”
“O WeChat nunca disse que seu objetivo é aumentar o número de usuários. Se quiséssemos, poderíamos ter feito isso há alguns anos e alcançado o marco de um bilhão de usuários/dia ainda mais cedo. Mas não é assim. Nosso número de usuários cresce organicamente. Na minha opinião, o que devemos considerar é que tipo de serviço queremos oferecer aos nossos usuários — essa é a questão mais importante. “
A vantagem de poder pensar em possibilidades, calcular riscos, antever (e inventar) potenciais necessidades dos usuários, o grande mercado à disposição e a falta de concorrência permitiram apostar muito mais em utilidade, ou seja, serviços ao usuário, do que em sedução (marketing, estética, anúncios ou o logotipo com touca de Papai Noel ou nas cores do Ano Novo Chinês).
Com uma base gigantesca de usuários cada vez mais dependente do app para realizar um bocado de tarefas, implantar uma novidade era sinônimo de ter pelo menos uma fração dessa base usando-a automaticamente. Mesmo que fossem apenas 10% de usuários, já seriam 100 milhões de pessoas — quem não desejaria ter esse alcance em seu produto? O tal do “ganho na margem”, tão citado hoje e relevante para produtos digitais, aumentou conforme a comunidade cresceu e o app se consolidou com um “tudo-em-um”.
“Com essas mudanças constantes e rápidas, não precisamos nos preocupar com quantos usuários a mais podemos conseguir. Estamos focados em como atender às necessidades futuras. Portanto, descobrir que tipo de necessidades os usuários terão no futuro é nosso objetivo.”
Era como um serviço público, o transporte coletivo, por exemplo. Reclamando ou não, usuários acabariam usando por que já precisavam do WeChat para quase tudo no cotidiano. Ou, de outro modo, como ocorre com serviços monopolísticos: “É o que temos, não há escolha, não resta outra coisa a não ser usar”. Isso permite até baixo apelo estético e alguma fricção de uso, que pode ser aparada com o tempo.
Outro fator: atingindo um bilhão de usuários e fornecendo serviços a eles, não há muito como elaborar uma persona e "vender" para ela. Quando você tem desde a pessoa de classe média de Pequim, esclarecida, viajada, usando o app para satisfazer as mesmas necessidades que um operário paquistanês empregado na indústria de construção civil chinesa ou o filho de uma família camponesa em uma comunidade longínqua usando o app para fazer entregas, é difícil falar para um sem excluir o outro. Solução: minimalismo, despersonalização, limpeza, foco na utilidade e no "menos é mais", marcas indeléveis de Zhang no produto.
(Há até quem associe o visual espartano e pouco sedutor do WeChat à solidão de seu criador, uma teoria criativa e tanto.)
“O WeChat nunca muda seu logotipo ou ícone para feriados [...] esta decisão [...] vem [...] da nossa convicção de bons princípios de design. Não faremos alterações que prejudiquem a estética de nosso produto.”
Para alguém que também não gosta de KPIs...
Além de todas as peculiaridades de Zhang, ele também não gosta muito de KPIs (Keys Performance Indicators), tão cultuados em negócios ocidentais.
“Honestamente, desde o início, a equipe WeChat nunca trabalhou em KPI. Isso não nos impede de melhorar constantemente. Assim como no Mini Programas, se tivéssemos usado KPIs, não saberíamos qual KPI definir, porque não existia tal coisa. Se tivéssemos definido um KPI, não saberíamos o que fazer.”
Números e a linha do tempo do WeChat, porém, ajudam a entender porque o produto tornou-se o super app que é e porque Zhang, com suas características, pode ser colocado no Olimpo dos grandes criadores de produtos digitais das últimas décadas.
Outubro de 2010: o WeChat começa a ser desenvolvido por uma equipe de nove pessoas mais Zhang, na liderança, e é entregue em um prazo de 70 dias.
14 de janeiro de 2011: lançamento do app, então um mensageiro de texto.
Maio de 2011: um novo recurso é incrementado, as mensagens por voz, que democratizam o acesso.
Outubro de 2011: chegam o “Shake” (chacoalhar o smartphone permite conectar-se com um desconhecido que também esteja chacoalhando o seu) e o “Message in a Bottle” (funcionalidade que permitia lançar mensagens como em uma garrafa ao mar, para descobrir novas pessoas). Ambos os recursos contribuem para a socialização de usuários e para trazer mais deles à plataforma, principalmente adolescentes.
Março de 2012: pouco mais de 400 dias após ser lançado, a marca de 100 milhões de usuários é alcançada, o que faz do WeChat um dos aplicativos de crescimento mais rápido no mundo.
Maio de 2012: lançado o “Moments”, recurso que permite compartilhar histórias, como no Facebook, o que eleva o WeChat do status de mensageiro a rede social.
Setembro de 2012: 200 milhões de usuários.
Janeiro de 2013: 300 milhões de usuários.
Agosto de 2013: lançados o “WeChat Pay” (pagamentos), “WeChat Official Accounts” (páginas para empresas), “WeChat Emojis” e “WeChat Games”. Atingida a marca de 100 milhões de usuários fora da China.
Janeiro de 2014: lançado o “Red Packet” (“Pacote Vermelho”), funcionalidade que permite enviar envelopes com pequenas quantias de dinheiro virtual a outras pessoas, o que ajuda a movimentar dinheiro entre desbancarizados e impulsionar microfinanças.
Outubro de 2014: permitido o compartilhamento de vídeos no “Moments”.
Maio de 2015: lançado o WeChat Run, aplicativo para monitoramento de condicionamento físico, similar a outros conhecidos ocidentais, como Strava ou Google Fit.
Janeiro de 2017: lançado o “Mini Programas”, API que permite a outros desenvolvedores subirem mini aplicativos dentro do aplicativo do WeChat, aumentando o efeito de rede e as oportunidades da plataforma.
Fevereiro de 2018: alcançada a marca de 1 bilhão de usuários.
Janeiro de 2019: alcançada, segundo o próprio Zhang, na conferência anual, a marca de um 1 bilhão de usuários ativos por dia (o que é questionável).
2020: segundo relatório da Tencent, atingidos 1,225 bilhão de usuários ativos por mês.
Outros pontos que vale destacar:
WeChat é considerada a marca de tecnologia mais forte em 2021, segundo relatório da Brand Finance.
US $67,9 bilhões é o valor da marca, na quinta posição, atrás de Apple, Amazon, Google, Microsoft, Samsung e Facebook (Tencent, a dona do WeChat, Huawei e Taobao, site de compras do Alibaba, todos chineses, vêm logo depois).
Na pandemia, o WeChat ajudou a rastrear pessoas em quarentena ou que haviam viajado (há polêmicas em relação a isso), forneceu acessos a dados em tempo real da doença e permitiu consulta e serviços de autodiagnóstico movidos a inteligência artificial para mais de 300 milhões de usuários (mais do que a população brasileira).
Na conferência do WeChat de 2020, foi divulgado que o acesso ao “Mini Programas” ultrapassou 300 milhões de usuários diários, com volume de transações de US $800 bilhões, aumento anual de 160%.
Isso certamente explica por que, com seu estilo recluso, avesso a reuniões de negócios, perfeccionista, micro gerenciador, centralizador e defensor do top-down na tomada de decisões de design e produto, o fundador do WeChat tenha conseguido trabalhar dentro de sua visão por todo esse tempo, em sede própria e sem precisar de media training, desenvoltura de palco ou, nas palavras de um jornal americano que cobre a China, usar jargões de negócios como “lógica de primeira ordem, modelo, fluxo de tráfego, de um sentido macro, tática, estratégia”.
(Por outro lado, segundo o periódico, no discurso de 2019, ele teria repetido os termos “usuário” e “amigo” mais de cem vezes e enfatizado expressões como “avançar lentamente”, “não fizemos bem o suficiente” e “paciência”.)
Inspirações do passado e avisos do futuro
Há um alerta obrigatório que estampa a venda de qualquer produto de investimento sério: “rentabilidade passada não representa garantia de rentabilidade futura”. O mesmo pode ser transposto para qualquer domínio que depende de evolução (não no sentido linear, mas adaptativo), como produtos digitais.
Após dez anos de sucesso, o WeChat naturalmente esbarra em circunstâncias que sua própria filosofia, o contexto do país e a concorrência com outros grandes players chineses colocam a um crescimento sustentado e orgânico, como desejado por Zhang.
O estilo centralizador dele é questionado quanto a ser um possível limitador à inovação futura do WeChat. Com mais usuários, mais funcionalidades e, portanto, maior complexidade, mais difíceis ficam as decisões e maior o gargalo que Zhang pode significar à empresa. Ele já foi questionado sobre isso e fala em maior autonomia do time, mas não esconde algumas contrariedades.
O que era um benefício — o fato de a empresa evoluir gradualmente e conseguir manter equipes enxutas, com as quais Zhang poderia se manter informalmente envolvido —, também pode ser um fator ameaçado pelo crescimento e a complexidade. Hoje, o WeChat tem 2.000 funcionários, divididos em grandes setores de 100 ou 150 pessoas. O crescimento e a perda de conexão com a visão do fundador pode atrapalhar a contratação de talentos alinhados, até então outra vantagem da empresa.
O conservadorismo de Zhang com a estética, o crescimento orgânico e os anúncios é outro fator que levanta dúvidas sobre a relação com a Tencent, já que a gigante de games agora enfrenta concorrência de aplicativos como o Weibo (similar ao Twitter), da poderosa Byte Dance, além de Pinduoduo e Alibaba, gigantes do comércio eletrônico, e Baidu, que se destaca nas buscas.
Até quando a filosofia de design minimalista, sem anúncios e gatilhos sedutores pode aguentar frente a necessidade de receita e enfrentamento aos concorrentes, é um ponto a ser acompanhado.
Outra questão para lá de relevante são as acusações de envolvimento das empresas chinesas, até por questões legais do país, com espionagem de governo baseada em dados. É uma questão ampla, complexa e muito polêmica, que pode tanto beneficiar empresas chinesas na geopolítica global, mas ao mesmo tempo afetá-las internamente em relação à expansão, relacionamento com clientes e acionistas. As respostas de governos ocidentais de tentar bloquear TikTok, WeChat e afins, assim como Pequim bloqueia aplicativos ocidentais, são consequências disso.
É uma questão interessante pensar como ser um gerente de produto com todas essas preocupações no encalço. Talvez isso explique um pouco da reclusão de Zhang, seu ar “preocupado”, a necessidade de controle e a evolução seletiva do produto. Para um exercício de imaginação, um aplicativo como o WeChat atinge uma população equivalente a cinco Brasis e pode ter um poder tão grande quanto o de uma nação, isso em um país em que o governo se preocupa em limitar outras formas de poder. Ao mesmo tempo, usuários também parecem cansados da mídia social por lá e apoiam quebras de monopólios das big techs chinesas.
Talvez todos esses fatores façam o WeChat perder o mercado que conquistou e parte da culpa acabe atribuída a Zhang. Talvez seu jeito de liderar mantenha o produto à frente das necessidades por um bom tempo ainda e continue nutrindo seu sucesso.
O exemplo de Zhang, como um gestor de produto e um design de experiência do usuário obstinado, certamente tem muito a inspirar, nos levar a reflexões sobre modelos, estratégia, táticas e uma porção de práticas que às vezes adotamos porque estão na moda. É uma visão bastante diferente do que tem se pregado no mundo ocidental.
As próximas criações, resultados e, espera-se, aparições de Zhang merecem atenção. Com sua capacidade de se colocar no lugar dos usuários, manter princípios espartanos, trabalhar arduamente e se antecipar a tendências, ele sabe, e expressa, que o problema maior não é a concorrência: é o próprio WeChat e ele como permanecerá relevante às mudanças dos usuários e do tempo.
“Qual é o sonho do WeChat? [...] Do ponto de vista do usuário, é se tornar a melhor ferramenta para eles. Do ponto de vista da plataforma, é criar um mercado que permita aos criadores de valor produzir valor para outros usuários.”
“Não importa o que façamos para responder a essas novas necessidades, se seguirmos nossas principais forças motrizes ‘fazendo a melhor ferramenta’ e ‘permitindo que os criadores de valor cultivem valor’, não acho que nos desviaremos muito.”
“Se houver um concorrente, seremos nós mesmos, será se nossa organização conseguir acompanhar as mudanças do tempo.”
“Um produto com previsão de sucesso está fadado ao fracasso. Produtos de sucesso não podem ser previstos.”
Referências
“What is WeChat's dream? WeChat founder Allen Zhang explains”, discurso de Allen Zhang na Conferência Anual do WeChat de 2019.
“Changemakers: Allen Zhang”, artigo de pesquisadores da London Business School, a partir de entrevistas com Zhang e executivos do WeChat, de setembro de 2019.
“WeChat behind the scenes at China’s most successful app”, outro artigo dos mesmos pesquisadores da London Business School, de novembro de 2019.
“The Kind of Creative Thinking That Fueled WeChat's Success”, artigo dos mesmos pesquisadores, com outra abordagem, à Harvard Business Review.
“China Business Corner: WeChat founder Allen Zhang and the Tencent conference”, artigo sobre a Conferência do WeChat de 2019, de um jornal americano que cobre a China.
“Tech Buzz China Ep. 34: WeChat’s 7.0 Update and Allen Zhang, the Man Behind the App”, vídeo que Zhang mandou para a Conferência de 2020, da qual não participou.
“China Roundup: WeChat's new focus on monetization”, artigo do TechCrunch sobre a Conferência Anual do WeChat em 2020, em que Zhang não apareceu, com especulações sobre o embate entre sua visão de design e as necessidades de negócio da Tencent.
“For Immediate Release”, relatório da Tencent (mais sobre estatísticas aqui).
“看完了张小龙的 2359 条饭否日记” (“Após ler os 2.359 de Allen Zhang no Fanfou”), artigo com pensamentos, citações e “pérolas” antigas de Zhang na rede social Fanfou, recuperadas por um usuário.
“微信第八年,张小龙其实八年都没变”, outros comentários (muitos, de arroubos poéticos a grandes constatações) de Zhang na Conferência de 2019.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.