Don Norman, parte 1: as muitas vidas do “senhor design”
Em dois textos, vamos revisitar a vida e ideias do pai do User-Centered Design e da User Experience (UX). Na 1ª parte, as peripécias de engenheiro a psicólogo, de inspetor nuclear a VP da Apple…
Donald Arthur Norman, o Don Norman, como é conhecido, tem um currículo — e vitalidade, entusiasmo, capacidade de revisar seus conceitos, entre outros atributos — de dar inveja.
Como um Forrest Gump da indústria da computação, esteve presente em vários momentos da evolução da área, desde seu contato com pioneiros da Ciência Cognitiva e Inteligência Artificial, nos anos 1970, até sua passagem pela Apple — onde cunhou a expressão “User Experience (UX)” —, a co-fundação do Nielsen Norman Group (empresa líder em consultoria de usabilidade no mundo) e outros tantos feitos.
Como o personagem do filme, também é um contador de histórias memorável. O homem escreveu e escreve muito, e divulga mais ainda o que pensa. Prefaciou diversos livros. Deu pitaco e fez críticas sobre produtos diversos; para desafeto de alguns, reclamou até do design da Apple na era Steve Jobs.
Tem mais de uma dúzia de livros publicados, mais acadêmicos ou mais pops, alguns dos quais se tornaram referências ao Design, como o seminal The Design of Everyday Things, famoso pelo bule vermelho, com alça estranha, lançado em um longínquo 1986 como The Design of Everyday Things e revisado e expandido 25 anos depois.
Se deixasse a barba branca crescer mais um pouco, Norman poderia ser confundido com Papai Noel, por causa de seu jeito agradável, professoral, paciente, bem-humorado e entusiasmado de imaginar e explicar conceitos, conforme pode ser visto em seus vídeos. Ironia do destino, ele faz aniversário em 25 de dezembro.
No próximo Natal, Norman completa 86 anos. Até há pouco tempo, ainda podia ser visto brincando de escorregador em uma loja de games. Aposentado da maioria de suas atribuições desde o ano passado, sua maior diversão, agora, parece ser uma educação transformadora no Design, além de seguir criando e elaborando conceitos importantes para a área, como fez com “Design Centrado no Usuário” no passado.
Também parece estar aprontando um novo livro abrangente sobre “o papel que o design desempenha no estado atual do mundo e como ele pode contribuir para ajudar a resolver os principais problemas sociais” — ambição nada pequena no âmbito do Design, convenhamos.
Dividido em duas partes, este texto é um apanhado sobre a biografia e as contribuições de Don Norman, não apenas ao Design, mas a toda a indústria da tecnologia, à “produtização” do software, ao pensamento inovador e, é claro, ao ato de cocriar com o usuário. É também uma homenagem pelo conhecimento, empatia, entusiasmo e vontade de construir um mundo mais agradável que ele transmite em suas tantas palavras e falas visionárias.
Nesta primeira parte, vamos falar de sua biografia, rica por si só, afinal, são mais de oito décadas de vida, que começam nas universidades americanas pioneiras na computação, adentra a Ciência Cognitiva, passa até pelo acidente nuclear mais grave em solo estadunidense, passa pela Apple e outros feitos.
Na segunda parte, semana que vem, falaremos mais de ideias e conceitos que herdamos de Norman e sobre toda sua produção de conhecimento e de crítica, principalmente a capacidade de revisar a si mesmo, reconhecer equívocos e aprender com erros — design de experiência iterativo na melhor forma.
As muitas vidas de Norman
“Já vivi várias vidas: professor universitário, executivo da indústria, consultor, palestrante e autor. Já fui engenheiro elétrico, psicólogo, cientista cognitivo, cientista da computação e designer.” — Don Norman, em seu site pessoal.
Há poucos relatos sobre a infância de Norman. Quase todas as suas biografias começam a partir de sua carreira acadêmica. O que se sabe é que nasceu em 1935, em Nova Iorque, ou seja, quatro anos antes da Segunda Guerra Mundial começar e que, como muitos garotos americanos de sua época, interessou-se pelo campo nascente da computação, que ganhou força com a própria Guerra e continuou em expansão após ela, na década de 1950.
Engenheiro eletrônico
O seu interesse de adolescência, como ele mesmo diz, não tinha nada a ver com humanidades, com artes ou com o design propriamente dito, embora suas palavras já transpirassem poesia. Ele gostava do “invisível”: elétrons e Física, o que naturalmente o levou ao campo da eletrônica e à curiosidade de saber como as coisas funcionavam.
Por conta desse interesse, ingressou em Engenharia Elétrica no MIT em 1957 — sim, para quem ainda duvida se Design aceita pessoas de diferentes formações, uma das maiores referências do campo de todos os tempos formou-se em... Engenharia Elétrica.
Mais interessante é que na época nem existiam computadores pessoais e os poucos computadores digitais que existiam eram apenas uma ou duas máquinas gigantescas em todo o planeta, que ocupavam departamentos inteiros de universidades, normalmente usados (e financiados) para alguma finalidade militar.
Ele lembra que fez a tese de graduação usando um computador analógico — engenhocas complexas, como o analisador diferencial, que permitia tarefas nada criativas ou divertidas, como calcular equações diferenciais.
Interessado na novidade dos computadores transistorizados (primeiras máquinas digitais), porém, logo depois do MIT ele foi para a Universidade da Pensilvânia, onde havia sido construído, em 1946, o ENIAC, o primeiro computador digital da história, e que originaria, em seguida, o primeiro computador comercial da história, o UNIVAC.
“Como engenheiro elétrico com bacharelado e mestrado, fui solicitado a instalar campainhas entre os escritórios do corpo docente e a secretaria. Minhas habilidades mecânicas desajeitadas de alguma tiveram sucesso. Depois disso, fui convidado a escrever um programa de computador para testar as teorias de meu orientador. Então, aprendi a linguagem de máquina do único computador da universidade: o Remington Rand Univac I de um milhão de dólares, com 1000 palavras de memória (implementado pelo engenhoso truque de enviar pulsos através de um tubo cheio de mercúrio). [...] Foi programado em linguagem de máquina — não, não o código assembly, os interpretadores e compiladores ainda não tinham sido inventados: digitamos os símbolos alfanuméricos. ” — Don Norman, em depoimento ao ser homenageado na Universidade de York.
Código alfanumérico quer dizer programar em com zeros e uns (0 e 1) mesmo, a forma mais primitiva de programação, que a máquina realmente entende. A forma de fazer isso era trocando tubos de mercúrio a vácuo, conhecidos como “válvulas”.
“As únicas pessoas que hoje sabem o que é uma válvula de vácuo são velhos como eu, historiadores e puristas fanáticos que insistem em usar válvulas de vácuo para seus amplificadores quando ouvem música. Todos os telefones celulares hoje (mesmo os burros) são muito mais poderosos do que Univac.” — Don Norman.
Psicólogo Matemático (?!)
Como não havia curso de Ciência da Computação na época, apenas uma possibilidade remota de criá-lo, Norman teria sido convidado a, “dentro de alguns anos”, ser um dos primeiros alunos.
Impaciente, ele decidiu que se não poderia estudar os computadores, estudaria aquilo que fornecia o modelo para aquelas primeiras máquinas: o cérebro.
O destino quis que uma nova cadeira fosse criada no curso de Psicologia da Universidade da Pensilvânia: Psicologia Matemática, o que permitia unir seu background de engenheiro à Psicologia — psicologia era um campo em ascensão, por causa de outro conflito, a Guerra Fria. Pimba! Norman ingressou na nova área, sendo um dos primeiros PhDs na disciplina.
Depois de passar também por Harvard, onde fez pós-doutorado e lecionou, Norman se tornou professor no Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia, San Diego (UCSD), onde passou boa parte de sua vida acadêmica (para ser mais preciso, entre períodos diversos, 29 anos ao todo).
De alguma forma, toda essa trajetória da Eletrônica à Psicologia lhe abriu caminhos para toda a carreira.
“A Psicologia do Processamento de Informação se transformou em Psicologia Cognitiva e, mais tarde, Ciência Cognitiva. Tornei-me chefe de Psicologia, mas me senti sufocado pelas abordagens limitadas. Então, comecei o primeiro departamento de Ciências Cognitivas para que pudesse ter um lugar onde combinássemos psicologia, ciência da computação, IA, neurociência, linguística e antropologia.” — Don Norman.
Cientista cognitivo
O campo que dominou tanto a Psicologia como a Inteligência Artificial (IA) após a segunda metade do século XX, chamado Ciências Cognitivas, foi território fértil e natural para Norman. Ele não só fundou o Departamento de Ciência Cognitiva da UCSD como também organizou e presidiu a Cognitive Science Society, além de ser membro da American Psychological Association (APA) e outras instituições similares.
Desde o MIT e sobretudo no campo amplo que é a Ciência Cognitiva, Norman teve contato com muitas referências dos estudos sobre computação, cérebro, IA e assuntos relacionados que dominaram a segunda metade do século XX.
De início, ele não foi bem visto por psicólogos tradicionais, mas acabou acolhido pela comunidade de computação. Conheceu e atuou próximo a outros grandes nomes como Marvin Minsky, um dos pais da IA, Herbert Simon, prêmio Nobel de Economia, criador de conceitos como “Economia da Atenção” e formulador da “Racionalidade Limitada” na Psicologia, e Amos Tversky e Daniel Kahneman, que hoje dominam o cenário da Economia Comportamental, com seus Sistemas 1 e 2, uma abordagem da Psicologia.
(Como história é sobre conexões, mais do que fatos isolados, nomes como Minsky, Simon e Kahneman volta e meia tendem a aparecer em artigos sobre tecnologia, ciência cognitiva e afins. Recentemente, comentamos sobre vários desses personagens da história na nossa Newsletter de Dados e Tecnologia, em “Uma viagem de sete décadas na Inteligência Artificial”. Kahneman, famoso pelos “vieses comportamentais”, apareceu em “Abordagens e técnicas em Design Comportamental”. Ele e Simon também são citados em “Na Economia da Atenção, precisamos de psicologia e política”. Esperem vê-los mais vezes em outros artigos.)
Do grupo de pesquisa de Norman na UCSD, também saiu uma linha de abordagem, focada em modelos de processamento de informação, com Geoffrey Hinton, que deu origem às redes neurais artificiais, o coração do Deep Learning (Aprendizado Profundo), usado atualmente em Visão Computacional e Processamento de Linguagem Natural, como no reconhecimento facial e em chatbots avançados, por exemplo. (Hinton também aparece em nosso artigo “Uma viagem de sete décadas na Inteligência Artificial”).
Na Ciência Cognitiva, Norman foi autor de livros que se tornaram referência sobre memória, atenção e aprendizado, assuntos até então pouco explorados ou abordados sem um olhar científico em outros ramos da Psicologia:
Nesses livros, Norman explicou muitos dos conceitos e descobertas das Ciências Cognitivas na Psicologia, como em relação a percepção (por meio dos sistemas auditivo e visual), processamento de informações e reconhecimento de padrões, por exemplo, o que está na base de muitas teorias e práticas do Design.
Seu background técnico, vindo da Engenharia, e sua nova abordagem na psicologia, aproximando-o da comunidade de IA, o levou a ser consultor em empresas pioneiras do Vale do Silício e da computação, como no Centro de Pesquisas Xerox Palo Alto (PARC), da Xerox, por exemplo.
“Meus tópicos de pesquisa eram sobre memória e atenção humanas. Escrevi livros sobre eles. [...] Usei as habilidades de processamento de informações aprendidas como engenheiro para explicar o comportamento humano. Hoje isso é um dado adquirido. Naquela época, era considerado escandaloso. Os psicólogos me evitavam, mas a comunidade de IA me convidou para me juntar a eles.” — Don Norman.
Inspetor de acidente nuclear
Em 28 de março de 1979, os EUA sofreram o desastre nuclear mais divulgado de sua história. Um dos reatores da usina de Three Mile Island, na Pensilvânia, apresentou problemas no sistema de resfriamento, algo crítico para que usinas do tipo não se transformem em bombas.
A falha, inicialmente mecânica, acabou agravada por fatores humanos, entre eles treinamento inadequado do pessoal e problemas no design do painel de controle da usina. Isso mesmo, problemas de usabilidade no controle de uma usina nuclear.
Em resumo, havia botões e indicadores luminosos ambíguos, o que levou os operadores humanos a acrescentar mais erros ao que era para ser a mitigação das falhas. (Para adicionar polêmica à história, um relatório já tinha previsto tais chances de erros humanos).
Norman, mais uma vez como Gump, personagem certo na hora certa, foi escolhido para integrar a comissão que investigou o acidente. Coube a ele averiguar a questão dos dashboards (painéis de controle da usina) e como os operadores humanos interagiam com eles.
“Minha vida mudou quando fui chamado pela Comissão Reguladora Nuclear para estudar o acidente de Three Mile Island” — Don Norman.
A constatação não poderia ser mais crítica. Como lembraria anos depois: “a sala de controle e as interfaces de computador de Three Mile Island não poderiam ser mais confusas”. Os botões, interruptores e indicadores, projetados e construídos por engenheiros, eram dispostos em linha reta, ambíguos e nada intuitivos aos operadores.
Norman contribuiu no redesenho do painel de controle do outro reator da usina para maior facilidade de operação.
Depois do acidente nuclear em solo americano, houve mudanças regulatórias para se considerar fatores humanos no projeto e construção de usinas. Para Norman, a revolução foi ainda maior. Ele ficou intrigado sobre como uma interface mal projetada e implementada oferecia riscos gravíssimos.
O trabalho na comissão de Three Mile Island mudou sua vida, como também declararia.
“Aha! Eu disse que, com meu conhecimento profundo em tecnologia e pessoas, deveria trabalhar na interface entre as pessoas e a tecnologia. Essa decisão foi uma mudança de vida. Isso me levou do laboratório para o mundo real e, como você verá em breve, da Universidade para o mundo dos negócios.” — Don Norman.
Engenheiro cognitivo
Norman começou a estudar como projetar painéis de controle mais intuitivos para a aviação, o que o levou a trabalhar com a DARPA (Agência de Pesquisa em Defesa dos EUA) e a NASA. Passou a aplicar conceitos da Ciência Cognitiva ao design (projeto) desses artefatos, fazendo-o cunhar o termo “Engenharia Cognitiva” para a área.
Corria a década de 1980, época da popularização dos primeiros computadores pessoais (desktops). Por sua experiência com aeronaves e contribuindo e produzindo conhecimento que eram utilizadas por muitas empresas do Vale do Silício, como a própria Xerox, depois Adobe (fundada por ex-funcionários da Xerox), IBM, Sun Microsystems, Microsoft e Apple, Norman naturalmente foi também um pioneiro da HCI, a Human-Computer Interaction(Interação Humano-Computador), um campo nascente ainda dentro da Computação, inspirado na Ergonomia e que teve outros precursores.
A interação nesse novo campo lançou alguns dos pilares do que Norman e colegas viriam a chamar de User Centered System Design (Design de Sistema Centrado no Usuário).
As duas expressões, Human-Computer Interaction e User Centered System Design acabaram casadas em um livro editado por Norman e Stephen Draper, em meados dos anos 1980: User Centered System Design: New Perspectives on Human-computer Interaction (Design de Sistema Centrado no Usuário: Novas Perspectivas na interação Humano-Computador, em tradução livre).
A obra reúne artigos de diversos pesquisadores dos EUA, Europa e Japão e é bastante abrangente sobre toda essa nova área que então surgia. É a pré-história da UX, embora adiante muitos temas que continuam contemporâneos até os dias atuais.
A introdução não poderia ser mais atemporal e atual. Trechos dela valem a pena ser relidos de vez em quando, nesses mais de 30 anos depois:
“O computador pode ser pensado da perspectiva de sua tecnologia — a partir do campo da Ciência da Computação. Ou pode ser pensado como uma ferramenta social, uma estrutura que mudará a interação social e política social, para melhor ou para pior. Pode ser pensado como assistente pessoal, onde os objetivos e intenções do usuário tornam-se as preocupações primordiais. Pode ser visto a partir da experiência do usuário, uma visão que muda consideravelmente com a tarefa, a pessoa, o design do sistema tem. O campo da interação humano-computador precisa de todas essas visões, todas essas questões e muito mais. Estudando essas várias perspectivas, pode envolver muitas disciplinas: ciência da computação, psicologia, inteligência artificial, linguística, antropologia e sociologia — a Ciência Cognitiva.
“Este é um livro sobre o design de computadores, mas do ponto de vista do usuário: Design de Sistema Centrado no Usuário. A ênfase está nas pessoas, ao invés de tecnologia [...] Não é um livro sobre como fazer as coisas. Não cobre tecnologia, técnicas e ferramentas. Nem é um livro de fantasias, de sonhos de mundos possíveis. [...] Pense nisso como um livro do qual derivar novas direções nas quais devemos nos mover. Pense nisso como um livro de perguntas, não um livro de respostas.”
— User Centered System Design: New Perspectives on Human-computer Interaction
O capítulo 3, “Cognitive Engineering” (Engenharia Cognitiva), escrito por Norman, é particularmente rico sobre sua visão da psicologia associada à engenharia, de como humanos e máquinas ou artefatos podem interagir e se comunicar. É também bastante profundo ao abordar a complexidade de tarefas, mesmo que simples, como fatores psicológicos influenciam nelas e como teorizar a ação humana.
“Projetar sistemas de computador para pessoas é especialmente difícil para um uma série de razões. [...] o número de variáveis e ações potenciais é grande, possivelmente na casa dos milhares.
“Não são apenas os computadores que são difíceis de usar, a interação com qualquer dispositivo complexo é difícil. Qualquer sistema real é o resultado de uma série de compensações que equilibram uma decisão de projeto contra outra, que leva em consideração tempo, esforço e despesa. Quase sempre os benefícios de uma decisão de design ao longo de um dimensão levam a déficits ao longo de alguma outra dimensão.
“O designer deve considerar a ampla classe de usuários, as limitações físicas, as tensões causadas pelo tempo e economia, e as limitações da tecnologia.”
— User Centered System Design: New Perspectives on Human-computer Interaction
A evolução (e mesmo críticas) desse pensamento, aprofundaremos no segundo texto da série, na próxima semana.
Designer obcecado
Foi por essa mesma época, meados da década de 1980, tirando um ano sabático em Cambridge, na Inglaterra, que Norman teve insights — ou melhor, um assomo de raiva mesmo — para começar a escrever The The Psychology of Everyday Things (A Psicologia das Coisas Cotidianas, em tradução livre), publicado em 1988, e que se tornaria The Design of Everyday Things (na edição em português, O Design do Dia a Dia) em edição revisada e ampliada, em 2013 .
O livro, considerado seminal, já distante da linguagem e dos assuntos acadêmicos da Psicologia ou da “Engenharia Cognitiva”, o catapultaria para um lugar de destaque no cenário do design mundial, e de um novo design, muito diferente das tradições de escolas de Design ainda baseadas na Estética em Belas Artes mundo afora.
Norman já ficara horrorizado com os botões dispostos linearmente na usina nuclear que inspecionou. Tinha estudado painéis de aviões. Quando jovem, projetou e implementou circuitos elétricos “na unha”. Entendia como ninguém (afinal, era um dos poucos a ter encarado o campo a fundo) como humanos e máquinas interagiam.
Ao se deparar com portas, interruptores de luz e torneiras nada amigáveis na Inglaterra, no seu período sabático, teve um acesso de fúria pelo fato de se confundir ao usar aqueles dispositivos tão simples.
Mesmo na dor, estava, de novo, no lugar certo, na hora certa. Conectou aquele mau design de interruptores e torneiras com o que trazia risco de aviões caírem e usinas nucleares explodirem, por induzirem a operações equivocadas.
É esse olhar incomodado que origina e abre The Design of Everyday Things e faz nascer um designer obcecado em Norman, disposto a melhorar e melhorar, imparável, o mundo ao seu redor (e até suas próprias opiniões e visões que desenvolve ao longo do tempo).
“[...] por que eu deveria ter problemas com portas e interruptores de luz, torneiras e fogões? ‘Portas?’, eu posso ouvir o leitor perguntando. “Você tem problemas para abrir portas?” Sim. Eu empurro portas que devem ser puxadas, puxo portas que deveriam ser empurradas, e entrar em portas que não puxam nem empurram, mas deslizam. Além disso, vejo outros tendo os mesmos problemas — desnecessários problemas. Meus problemas com portas se tornaram tão conhecidos que portas confusas costumam ser chamadas de ‘portas normandas’.” — The Design of Everyday Things.
The Psychology of Everyday Things meio que inaugura uma nova fase de Norman, um pensamento que ele continuará aprimorando e desenvolvendo anos depois, até a atualidade.
A primeira versão do livro é bastante voltada para produtos e artefatos físicos, condizentes com a época da escrita, meados dos anos 1986 e 1987. A segunda versão, revisada e ampliada, 25 anos depois, alterou exemplos para condizer com a época em que foi revisado (2013), ganhou prefácio novo e dois novos capítulos: “Design Thinking” e “Design no mundo dos negócios”.
O foco central da abordagem revisada, porém, é não considerar apenas compreensão e usabilidade de produtos (os aspectos racionais do uso, digamos), mas ser muito mais amplo e abrangente, aliando estética, prazer, diversão, enfim, emoções aos design de produtos e artefatos.
“A primeira edição do livro se concentrou em tornar os produtos compreensíveis e utilizáveis. A experiência total de um produto cobre muito mais do que sua usabilidade: estética, prazer e diversão desempenham papéis extremamente importantes. Não houve discussão sobre prazer, alegria ou emoção. A emoção é tão importante que escrevi um livro inteiro, Design emocional, sobre o papel que ela desempenha no design. Essas questões agora também estão incluídas nesta edição. — The Design of Everyday Things.
O livro se tornou leitura e até currículo básico em Design. Motivou cursos, popularizou o Design e fez muita gente se interessar e migrar para o campo ao longo dos anos. Continua sendo bibliografia básica e obrigatória a UXs, mesmo que até a segunda edição já tenha alguns exemplos desatualizados e que valham revisão.
“A primeira edição do livro teve uma vida longa e saudável. Foi lido por pessoas comuns e por designers. Foi usado em cursos e distribuído como leituras obrigatórias em muitas empresas. Agora, mais de vinte anos após seu lançamento, ainda é popular. [...] Muitos leitores me disseram que mudou suas vidas, tornando-os mais sensíveis aos problemas da vida e às necessidades das pessoas. Alguns mudaram de carreira e se tornaram designers por causa do livro.” — The Design of Everyday Things.
Por simbolizar e concretizar a guinada de Norman para um design das “coisas do dia a dia”, consolidando a evolução de seu pensamento ao longo de décadas, também veremos um pouco mais do livro na próxima semana.
O mercado, grande escola
A Apple lançou o Macintosh em 1984, com direito a um anúncio de 1,5 milhão de dólares no intervalo do Super Bowl (considerado um dos maiores anúncios de todos os tempos).
Embora as vendas caíssem rapidamente devido aos custos, o que levou a brigas entre Steve Jobs e do CEO que ele mesmo contratara (e à saída nada amigável de Jobs da própria Apple em 1985), a empresa ganhou uma fatia importante do mercado de editoração eletrônica e fãs.
Toda a sedução que a Apple já exercia, pioneira na interface gráfica, no uso do mouse e outros cuidados estéticos e de experiência, atraiu gente da área de HCI para a empresa.
Um dos nomes foi Bruce “Tog” Tognazzini, funcionário número 66 da Apple e colega de Don Norman ao longo da vida, que documentou e padronizou uma série de princípios de design da empresa.
Norman largou a vida acadêmica para também ingressar na Apple em 1993. De associado, rapidamente assumiu uma vice-presidência, concentrando esforços no que ficou conhecido como o Apple Research Labs sob sua gestão.
Foi na Apple que Norman diz ter aprendido sobre negócios em profundidade, a pensar em produtos e a jogar o jogo do mercado de fato.
Foi lá, também, que ele e o grupo do Apple Research Labs, que tinha ex-alunos seus da UCSD, cunharam o termo “User Experience” (“Experiência do Usuário”), abreviada para “UX”, e começaram a desenvolver a área, a qual se consolida no mercado de tecnologia a partir dos 2000 e consagra Norman como pai do termo.
“Aprendi [na Apple] sobre as restrições de custo, gerenciamento da cadeia de suprimentos, vendas e expectativas do cliente no desenvolvimento de produtos: ter uma ótima ideia foi a parte mais fácil. Enquanto estávamos lá, juntamente com vários colegas escolhidos a dedo, inventamos o termo “Experiência do usuário (UX)” e começamos a definir como a UX se encaixa no mundo do design. E descobri designers de verdade.” — Don Norman.
Provavelmente, foi na Apple, também, que Norman teve de lidar com outras características do mercado não tão inspiradoras quanto a experiência do usuário, e que o faria enxergar o design muito mais aliado ao negócio depois.
O período em que ele passou na empresa, de 1993 a 1997, foi um dos piores da Apple, com Steve Jobs fora (e brigado com a empresa, apesar de ainda possuir ações dela), Microsoft monopolizando o mercado e outras complicações.
A empresa estava à beira da falência quando Jobs voltou, em 1996, para se tornar CEO novamente no ano seguinte. Norman, Tog e vários outros deixaram a empresa ou foram demitidos e o Apple Research Labs, onde UX nasceu, foi fechado por Jobs.
Tog e Norman criticaram duramente os padrões e práticas de design Apple, já na era Jobs e com a empresa a caminho de se tornar a mais valiosa do mundo, décadas depois.
De qualquer forma, mais uma vez, Norman esteve em um dos lugares certos (talvez em uma hora não tão certa dessa vez) que lhe permitiu conhecer o mercado, botar a mão na massa e desenvolver conhecimento prático em Design, o que o levaria a novos vôos seguintes.
Nielsen Norman Group (NN/g)
Depois de deixar a Apple e passar pela Hewlett & Packard (HP), Norman co-fundou, com o colega e especialista em usabilidade Jakob Nielsen, o Nielsen Norman Group (NN/g), que se tornou uma consultoria líder no mundo em Design de Experiência do Usuário, ditando muitas tendências da área.
Tognazzini, que esteve com Norman na Apple, tornou-se diretor da empresa, cargo que ocupa até hoje. Juntos, eles transformaram o NN/g em um centro de pesquisas e descobertas, avaliações de sites e aplicativos, certificações de UX Designers, além de produzir muito conhecimento aplicado ao mercado por meio de artigos e pesquisas.
É do NN/g, por exemplo, as dez heurísticas de usabilidade para design de interface de usuário:
visibilidade de status do sistema;
combinação entre o sistema e o mundo real;
controle e liberdade do usuário;
consistência e padrões;
prevenção de erros;
reconhecimento em vez de recordação;
flexibilidade e eficiência de uso;
design estético e minimalista;
ajudar usuários a reconhecer, diagnosticar e se recuperar de erros;
ajuda e documentação.
As heurísticas foram elaboradas inicialmente por Nielsen em 1990 e reelaboradas em 1994, a partir de uma análise de 249 problemas de usabilidade. Métodos e descobertas do NN/g acabaram sendo patenteadas pelo grupo ao longo dos anos, algo comum nos EUA.
(Um artigo de capa, no site da empresa, de 15 de agosto de 2021, por acaso aplica as dez heurísticas ao contexto atual: 10 Usability Heuristics Applied to Complex Applications).
Também é do NN/g, a Lei de Jakob da Experiência do Usuário na Internet, que diz que “usuários preferem que seu site funcione da mesma maneira que todos os outros sites que já conhecem”. O que explica a padronização de menus, botões, carrinhos de compra, links destacados e outros detalhes mais.
Pelo fato do NN/g atuar desde os primórdios da Internet comercial, desenvolveu parte de seus conhecimentos baseados no uso de desktops e websites, o que pode soar um tanto desatualizado e primário hoje, diante dos avanços que temos. De qualquer modo, o grupo abriu caminho quando “tudo era mato” em termos de experiência do usuário e design para a tecnologia.
No NN/g, percebe-se Norman deixando de atuar em frentes práticas para se tornar cada vez mais um grande consultor e pensador do design, com escrita e aparições frequentes, por meio de palestras e vídeos, que abordaremos no próximo artigo.
Vida revisada e ampliada
Os fatos descritos acima são como que “melhores momentos” da biografia de Norman. Ele topou vários outros desafios e recebeu prêmios e homenagens por suas contribuições:
além de ter lecionado em Harvard e, a maior parte do tempo, na Universidade da Califórnia em San Diego, foi também professor de Ciência da Computação na Northwestern University e no Korea Advanced Institute of Science and Technology (KAIST), na Coreia do Sul;
foi bolseiro da IDEO, a companhia responsável por popularizar o Design Thinking no mundo;
chegou a seguir um cliente até Chicago, para apostar em uma startup educacional, negócio que não deu certo;
recebeu dois “honoris causa”, pela Universidade de Pádua, na Itália, e pela Delft University of Technology, na Holanda, renomada escola de Design;
ganhou vários prémios e medalhas, como a Medalha Benjamin Franklin em Ciência da Computação e Cognitiva;
tornou-se membro honorário da Design Research Society e faz parte, como vimos, de uma série de associações e institutos;
integrou conselhos consultivos de grandes empresas, como Motorola, Toyota, Panasonic etc.
presidiu em dois períodos o The Design Lab, na Universidade da Califórnia em San Diego, por onde teve passagens recentes, além de ser visto em alguns TED Talks.
O curriculum vitae está disponível na íntegra, tem 23 páginas (em fonte 12, ao que parece) e, obviamente, traz muitas outras realizações e reconhecimentos. Resumos de sua biografia, para fins de divulgação (outro documento, com sete páginas e fonte em corpo aparentemente menor) também pode ser conhecida, engrandecendo várias destas mesmas realizações e reconhecimentos.
Hoje, como ele mesmo faz questão de destacar, é um aposentado de diversas funções, carregando títulos como “honorário” e “emérito”, definições para alguém que deixou um cargo mas continua com o título ou que continua recebendo e podendo atuar, mas já sem obrigações.
“Já me aposentei cinco vezes e recebo o título de ‘emérito’ de todos os lugares.” — Don Norman.
Tudo isso é sobre a vida de Don Norman; e ainda assim são recortes de suas mais de oito décadas de contribuições à Ciência e ao Design. De outro modo, esta é a história de Don Norman visto por fora, por seu ser e estar no mundo.
Mais interessante do que isso é observarmos o mundo de seu ponto de vista, a partir de seus artigos, livros, palestras, falas em vídeo e o exercício de observação e crítica — de produtos, de ideias, de si mesmo — que tem feito ao longo do tempo.
Muitas pessoas se concentram no sucesso, mas o fracasso é um professor muito mais eficaz. Sei disso por experiência própria […] O sucesso pode fazer as pessoas se sentirem bem. O fracasso pode tornar as pessoas melhores. — Don Norman, em um dos tantos prefácios de livros que escreveu.
Nessa trajetória, refletiu e revisou (criticando, muitas vezes) os próprios conceitos que criou, como “Design Centrado no Usuário” e “UX”, não poupou o design da Apple e, obstinado, nunca parou em pensamentos cristalizados ou definidos.
Continuou e continua revisitando ideias, registrando-as e elaborando-as, a ponto de evoluir o Design de técnicas para dispor informações na tela de desktops até, mais atualmente, o que chama de "Community-Based, Human-Centered Design” (Design Comunitário e Centrado no Humano) e o uso do Design para resolver grandes questões políticas e sociais do planeta.
É o que aprofundaremos no próximo artigo sobre Don Norman, que podemos apelidar de “o senhor design”, por tudo que fez pela área.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.