UX Research e Etnografia na era dos dados: observar comportamentos ou medi-los?
À medida que produtos digitais escalam, métodos qualitativos podem se ver ameaçados por abordagens quantitativas. Aproximar as duas metodologias pode ser um diferencial para o Design e o Negócio.
A pesquisa etnográfica, método em que um UX Researcher (pesquisador de comportamento do usuário) convive com um ou mais usuários, a fim de entender seus hábitos, tornou-se ferramenta consagrada, principalmente na infância de produtos digitais. Seja enquanto este ainda é um embrião, nas etapas de ideação e prototipação, seja quando já engatinha como MVP1, na busca de aprendizagem validada2 ou do tão buscado product market-fit3.
No entanto, à medida que o produto ganha escala e permite a captura de uma grande quantidade de dados sobre o uso e a satisfação de clientes, parece que basta um ou alguns algoritmos de machine learning rodando sobre tais dados para que métodos quantitativos coloquem em segundo plano abordagens qualitativas, que requerem proximidade com o usuário, abordagem em pequena escala e que lançam mão de narrativas para entender comportamentos.
Web afora há uma quantidade crescente de debate em torno dessa disputa, sobretudo do papel que resta a métodos “quali” frente ao hype dos métodos “quant”. Não é incomum que designers e outros profissionais em uma posição de UX researcher (área que tem empregado antropólogos, etnógrafos, cientistas sociais, psicólogos e profissionais do marketing e da comunicação) se vejam cada vez mais diante dessa questão. Alguns se perguntam se ainda haverá espaço para o que aprenderam ou se o jeito é jogar a toalha e aceitar que Ciência e Análise de Dados dominará tudo.
Por um momento, de fato, com o conceito de data-driven (dirigido por dados) ganhando força nas organizações, pareceu que bastava reunir o máximo de inputs possíveis — de cliques e rastros de mouse a tempo de espera ou de ação numa tela, de comentários emotivos a avaliações mais racionais — que uma jazida de ouro de hábitos e comportamentos naturalmente se esconderia neles. Bastaria minerá-los. Matemática e poder computacional iriam se encarregar de revelar a riqueza.
Nada como cavalos postos em batalha, porém, para ver o quanto expectativas e crenças tendem a serem atropeladas pela realidade. De repente, implantado no calor da tendência, Big Data se revelou apenas um acumulado de dados esparsos, sem relacionamentos nem significado. Técnicas estatísticas confirmaram o que já se sabia a olho nu, resultaram em quantificações de pouca relevância para objetivos do negócio ou, pior, extraíam percepções enviesadas ou equivocadas de massas de dados.
No que os mesmos designers, antropólogos, etnógrafos, cientistas sociais, psicólogos e profissionais do marketing e da comunicação, antes em dúvida com o futuro da pesquisa qualitativa sobre usuários, poderiam voltar a ser úteis? Ou, de outra forma, como poderiam se manter relevantes, com seu conhecimento em métodos qualitativos, sua experiência imersiva, seu feeling sobre pessoas reais, durante o ciclo de vida de um produto?
Compreender contexto e cultura
Pesquisadores experimentados em observar e narrar a realidade tem o poder de somar algo fundamental para estratégias orientadas ou informadas por dados (data-informed), conceito mais contemporâneo do que o de data-driven: são capazes de compreender “contexto” dos dados, isto é, atribuir e depreender significados de símbolos que compõem ou estão associados aos dados. Não é pouca coisa: pode ser fundamental para uma estratégia mal resolvida versus uma estratégia acima da média.
Em alguns casos, já se fala de “data ethnography", etnografia movida a dados, com o pesquisador dominando ferramentas e técnicas mais quantitativas. Mas não vamos cair no mito dos unicórnios profissionais. UX Researchers podem desenvolver uma simbiose rica, para ambos e para o negócio, por meio da colaboração com data scientists e data analysts.
Não dói nada ao profissional dedicar um tempo e entender, mesmo que apenas em alto nível, um pouco da lógica matemática envolvida no entendimento de grandes massas de dados. Da mesma forma como pode ser muito recompensador ajudar profissionais de dados ou mesmo lideranças de dados a entenderem o porquê de coletar determinados sinais comportamentais de usuários ou por que um determinada tendência é derivada dos dados coletados.
Pesquisadores de experiência do usuário experientes podem captar nuances de situações reais que nem sempre são passíveis de quantificação simples e precisa. São — devem ser cada vez mais — versados em cultura, algo para lá de complexo, sutil, fugidio, dependente de ambiente, momento de vida, tradições e moda de indivíduos e grupos, até mesmo de suas características ou estados bio-psico-fisiológicos.
Mais: bons UX Researchers, na esteira da Antropologia e da Etnografia, podem desenvolver uma talento extra para análise crítica, “imparcial” e sensata de dados (nunca é demais lembrar que imparcialidade completa é impossível, mas honestidade intelectual e intuição apurada são completamente passíveis de treino e melhoria contínua).
Não se trata apenas de instalar trackers e sensores para captar quaisquer movimentos sem sentido do usuário, para tentar decifrar intenções em comentários em linguagem natural ou para, por meio de cruzamentos de informações, descobrir se a pessoa está propensa a comprar de novo e de novo. É muito mecânico, meio que a la “cão de Pavlov”, um experimento behaviorista bem conhecido. Trata-se de buscar algo mais: medos e desejos de pessoas enquanto grupo e enquanto seres humanos com sua inerente complexidade. O que pode, evidentemente, ser de grande valia não só na qualificação de produtos existentes, mas também na descoberta de novas funções ao mesmo ou, quem sabe, de novos produtos.
O entrosamento entre busca qualitativa e métodos quantitativos, desde o embrião de um produto, pode ajudar a determinar quais tipos de dados comportamentais devem ser medidos, ao longo do tempo, para que se ofereça uma melhor experiência ao usuário. Após o produto ter alcançado o market-fit e estar de vento em popa em sua fase de escalada ou já em sua maturidade, a abordagem pode se inverter: partir-se da análise dos dados, já estabelecidos e refinados, para descobrir resultados (o que) e utilizar a observação, a conversa e o convívio com usuários para aprofundar os porquês de tais resultados. Outra possibilidade é avaliar os impactos que eventuais melhorias que visam corrigir ou aprimorar um aspecto do produto poderão ter.
A menos que chegarmos a viver na Matrix completa, um mundo em que a máquina for soberana (o que rende uma boa dose de futurologia), é provável que humanos continuarão existindo, trabalhando, sobrevivendo, compondo grupos, criando moda, tendências, transformando ou resgatando hábitos, mantendo tradições, enfim, criando cultura.
Considerando que produtos tendem a se diversificar e se especializar em nichos, parece haver muito, ainda, o que farejar, intuir e sentir no contato com pessoas reais. Pensemos, por exemplo, nas inúmeras possibilidades de produtos e serviços voltada a crianças, adolescentes, idosos, gestantes, pessoas com deficiência temporária ou permanente, a grupos profissionais específicos, a grupos de hobbies ou afinidades: cada um é uma cultura à parte a ser desvendada, que muda com o tempo, e que pode ser destrinchada em dados granulares bastante qualificados e ricos, que revertam não só em resultados ao negócios, mas em um produto melhor aos próprios usuários.
Além disso, uma abordagem próxima a pessoas reais pode ajudar a criar mais respeito para com o usuário, a não vê-lo apenas como um número de cartão de crédito a mais. No mesmo sentido, capturar menos e melhores dados, isto é, aqueles realmente necessários à finalidade do produto e do negócio, pode ir ao encontro de requisitos legais relacionados a dados pessoais e dados pessoais sensíveis (orientação política, religiosa e sexual, biometria etc.), como a brasileira LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e o europeu GDPR (General Data Protection Regulation).
Ou seja, a pergunta lá do título parece não ser uma questão de “ou”, mas sim de “e”: observar e medir comportamentos. Talvez observá-los mais e melhor, primeiro, para, depois, medi-los melhor. E, ao medi-los, não deixar de confrontar os resultados com novas observações, para não perder o que os dados explicam sobre a realidade e sobre as pessoas.
Cases e debates web afora
O uso da etnografia não é recente na indústria do consumo e já tem sido abordado pelo marketing e a publicidade, com eficiência, desde os anos 80 e 90. Marcas como Adidas, por exemplo, usavam-na com sucesso nos 2000. Enquanto concorrentes apostavam na associação da marca com artistas e atletas famosos, a companhia alemã, por meio da ReD, uma empresa dinamarquesa, contava com estudantes de diversas ciências sociais para investigar hábitos e desejos de consumo de clientes. A parceria ajudou a descobrir, por exemplo, que pessoas “fitness” queriam roupas para “aparecer” bem e causar uma boa imagem, e ajudou a aprimorar vestuário e equipamentos (como chuteiras) a atletas profissionais.
Do Lego à Samsung, da Microsoft à Intel, outras companhias também recorrem ao trabalho de etnografia para entender seus clientes. A Intel contou com o trabalho da antropologista cultural Genevieve Bell, referência na área, que esteve à frente dos grupos pioneiros de pesquisa com usuários da companhia e que acabou alçada ao cargo de vice-presidente e membro sênior da empresa.
Para ficar em um exemplo mais “tech”, a Netflix é um caso de empresa movida a Big Data que usou da antropologia para entender hábitos de consumo sobre seriados. Em 2013, a empresa contratou Grant McCracken, antropólogo canadense especializado em cultura e consumo, para tentar entender por que determinados hábitos de consumo de seriados, detectados a partir dos dados, estavam ficando evidentes. McCracken conviveu com maratonistas de séries, observou seus hábitos em seu contexto e relatou que “A TV ficou melhor em parte porque escapou do controle estupefato de classificações e reguladores”, que os consumidores não estavam mais “assistindo à TV lixo” e que “uma boa TV criou espectadores mais inteligentes”.
O relato, mantido pelo próprio McCracken no Medium, a partir de um ensaio na revista Wired, é bastante rico. O pesquisador continua compartilhando relatos de hábitos de consumo sobre TV com a mesma visão. Obviamente, não está isento de críticas, de que seu trabalho seria comercialmente “pró-Netflix” e que teria ignorado o binge watching (maratonar séries) como vício. Do ponto de vista do negócio, porém, é provável que o estudo tenha somado percepções muito mais ricas à Netflix sobre seus dados, tenha ajudado a empresa a otimizar a criação e entrega de seus conteúdos e, consequentemente, a ter mais resultado como negócio.
A Google — talvez a big tech mais data-driven do mundo, ou pelo menos um dos maiores símbolos dessa cultura — também se utiliza de estudos em Antropologia para melhorar produtos como o Google Newslab, o Think with Google, o Youtube, o Google Zoo e o Google Singapura.
Do lado de profissionais e da academia, iniciativas para difundir o uso dos métodos qualitativos da etnografia também têm crescido na era dos dados. EPIC, uma organização sem fins lucrativos, impulsionada por Microsoft e Intel, por exemplo, é uma que advoga pela presença da etnografia nas corporações.
Em uma conversa publicada no portal, entre Tye Rattenbury, cientista de dados da Salesforce, e Dawn Nafus, etnógrafo da Intel, é possível ver como profissionais de grandes companhias estão tentando entender essa interseção entre dados e etnografia. Nafus, aliás, reforça bem o papel do entendimento de contexto e de cultura:
“A etnografia é uma habilidade de pesquisa que torna possível ver como é o mundo dentro de um determinado contexto. [...] Os etnógrafos olham para o mundo social como sistemas emergentes em evolução dinâmica. São sistemas emergentes porque as pessoas respondem reflexivamente ao presente e ao passado, e essa resposta molda o que farão no futuro.”
Ou seja, a realidade não é estática e apenas os dados, uma vez captados e postos para serem analisados, não serão perfeitamente padronizados e unânimes para sempre, gerando saídas precisas às mesmas entradas. Ao contrário, podem ter de sofrer ajustes ou serem descartados (tanto em relação aos tipos de dados quanto aos algoritmos que os processam) para se adequarem aos hábitos e à cultura que usuários criam e modificam incessantemente no dia a dia.
Off-topic: exatas vs. humanas
Dê-se o nome que se preferir: exatas vs. humanas, métodos “quali” vs. “quant”, algo mais indutivo vs. algo mais intuitivo-dedutivo, números vs. narrativas. Um certo distanciamento entre Ciências Naturais e Ciências Sociais existe desde que estas últimas surgiram, no século XIX, a fim de estudar fenômenos como nossa organização social e nossa cultura. No extremo, é um assunto que rende longuíssimos debates e pode nos levar às profundezas da Filosofia da Ciência.
Decorrente principalmente da Física e da Mecânica Clássica, por vários momentos acreditou-se que o mundo era bastante determinista e que bastava descobrir os padrões matemáticos que o regiam para saber que, dadas determinadas entradas (causas), ter-se-iam tais saídas (consequências). Isto até que funcionou para sistemas fechados, típicos do mundo observável de objetos, regidos pelas leis da Física.
Mas ao estender à metodologia a interações sociais, trocas econômicas, formação de governos, manutenção de tradições, gênese de linguagens naturais, histórias de impérios e símbolos e signos de diferentes culturas — onde eventos dinâmicos importam mais do que objetos estáticos —, rapidamente percebemos que o mundo humano não era tão óbvio quanto calcular 2 + 2. Tanto que nas primeiras abordagens das Ciências Sociais, como na Sociologia, não era coincidência a busca de um mesmo rigor que vigorava nas disciplinas mais exatas. Ao longo do tempo, porém, tivemos de avançar a abordagens mais sistêmicas, reconhecendo que apenas reunir e contar partes — o cerne do método indutivo — pouco ajudava no entendimento do todo.
Toda abordagem centrada em dados, atualmente e invariavelmente, de alguma forma, bebe em fontes que vêm lá do mundo das exatas, onde a Matemática e a Estatística são as ferramentas por excelência para entender o mundo, quer seja o mundo “externo”, dos objetos e da natureza, quer seja o mundo “interno” dos seres humanos. Pode-se argumentar, não sem razão, desta visão mais “exata”, que apenas observar hábitos e comportamentos, a fim de entendê-los, pode não passar da criação de uma narrativa, a partir do ponto de vista subjetivo (e questionável) do pesquisador-observador, que tenta dar sentido ao que enxerga a partir de suas “lentes” (algo, no extremo, não muito diferente de mitologia ou religião).
Por outro lado, o mundo dos objetos e da natureza ou o mundo humano não são fontes óbvias e prontas, padronizadas e imutáveis, de quantidades discretas (0 ou 1) ou contínuas (qualquer coisa entre 0 e 1), que bastam serem medidas. Para serem quantificáveis, praticamente tudo requer compreensão e tradução de significado, ou seja, basicamente dependem de linguagem e da cultura que a gera. Não há como determinar uma medida de tempo ou uma quantidade de compras efetuadas sem entendimento ou acordo mínimo sobre “o que é tempo” e “o que é compra” — e vale sempre lembrar que o mundo não é a “bolha” em que a sociedade “Weird”4 vive, mas algo muito mais diversificado.
Mais: para entender “resultados” que o processamento de dados devolve, não há como prescindir de interpretação, a qual, da mesma forma, depende de linguagem e de cultura — e quando se fala em resultados deliberadamente manipulados, são sinais de moral e cultura em operação. Mesmo a criação do construto que irá processar tais dados dependerá de humanos, com sua carga de símbolos e significados, em suma, de contexto. A menos que habitemos o mundo da Matemática Pura, o mais próximo de algo insípido, inodoro e incolor, qualquer contato com a natureza e com o humano, a tal da “realidade”, não escapará da nossa atribuição de valor, de tons, de nuances, de sabores — de novo, cultura.
A reflexão acima ajuda a entender porque abrir mão de um método em detrimento de outro pode deixar de lado percepções que, no fim das contas, se complementam. Como negócios não estão destinados a buscar “verdades” ontológicas e são um campo farto para tentativa e erro, em busca do que gere mais resultado (dinheiro, satisfação, impacto social etc.), o relacionamento entre pesquisadores de comportamento do usuário versados em investigação imersiva, cultura e grupos, e entre profissionais e times treinados em abordagens quantitativas, como data analysts e data scientist, pode remover limitações que cada abordagem tem ou, de outro modo, ampliar o potencial que cada uma oferece. Humanas e exatas, “quali” e “quant”, podem ficar muito melhores juntos.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.
Minimun Viable Product (MVP), em tradução livre: “produto mínimo viável”, é a primeira e a mais simples versão de um produto, lançada com o mínimo de esforço possível, a fim de testar se a proposta de valor tem mercado e permitir um ciclo rápido de iterações, como correções, melhorias ou, caso o produto não dê certo, permitir “pivotá-lo”, algo como mudar substancialmente os rumos do produto e/ou do negócio.
Aprendizagem validada (validated learning) é um conceito introduzido por Eric Ries no livro Lean Startup (em português, A Startup Enxuta). Descreve o ciclo de construir (build), medir (measure) e aprender (learn) continuamente sobre um produto, método que permite entender e se ajustar mais rapidamente, e com menos recursos, às necessidades e desejos de usuários e às características do mercado.
Market-fit, em tradução livre: “ajustado ao mercado”, é um termo em relação a produtos físicos ou digitais que significa a fase em que o mesmo criou ou alcançou um mercado consumidor, capaz de lhe dar sustentabilidade financeira. Resumindo: o produto está dando lucro.