Produto e Design no Metaverso (?)
Muitas perguntas, poucas pistas, nenhuma resposta definida. Um exercício de imaginação sobre como gestão e design de produtos podem ser impactados fora e dentro de mundos etéreos
Metaverso deixou de ser uma utopia ou distopia das páginas da ficção para se tornar uma meta de empresas de games e, mais recentemente, de forma declarada, do Facebook, como vimos no artigo anterior.
No texto em tela, vamos imaginar como isso pode impactar a Gestão de Produtos e o Design de Produtos Digitais como praticamos e conhecemos atualmente.
Um aviso é bem-vindo: tratam-se de especulações e de alguma futurologia, é claro. A intenção, porém, é costurar conjeturas com o que alguns especialistas e influenciadores do assunto já vêm pensando a respeito.
O objetivo não é o de acertar previsões, mas de somar insights que podem nos ajudar a estarmos cientes e preparados para a chegada do Metaverso, o que, ao que tudo indica, será um processo gradual, porém não livre de solavancos.
A primeira grande questão para pensar em produto e design no Metaverso é nos perguntarmos como ele, o Metaverso, será, quais seus padrões, regras, características?
Para respondermos a essa questão, porém, é mais conveniente nós nos fazermos uma outra pergunta: quem iniciará a construção do Metaverso?
Quem tomar a dianteira, sejam as empresas de games Roblox e Fortnite, o Facebook, a Microsoft ou outros players, é um ponto que pode determinar ou, ao menos, influenciar, como o Metaverso será construído.
Isso nos remete a discussões sobre a Web 3.0, que alguns dizem que caminha lado a lado com o Metaverso e outros dizem que será o próprio Metaverso.
Mais ainda: nos remete a questões que vão além da tecnologia e dizem respeito à velha política, tais como:
O Metaverso será proprietário, determinado por uma ou algumas poucas empresas, como ocorre hoje com a Apple em relação à Apple Store, por exemplo. Ou não: será aberto, em que milhares, milhões ou bilhões de players, sejam empresas ou usuários-criadores, poderão agir de igual para igual, apenas com base, talvez, em alguns pressupostos de livre mercado?
Teremos um Metaverso único, como a Internet de hoje, em que todos estarão sujeitos às mesmas liberdades e restrições. Ou teremos uma constelação de muitos Multiversos, com regras próprias — o que alguns chamam de “Multiverso”, uma espécie de universos de Metaversos?
A questão sobre se o Metaverso será proprietário ou aberto é fundamental para a definição das tecnologias, do formato e das regras que o Metaverso terá.
Assim como a Microsoft criou e/ou popularizou conceitos como o de janelas e dos botões “Iniciar” e “Fechar”, até hoje vistos em interfaces de usuário, quem sair na frente terá o poder de definir padrões similares ao Metaverso. Isso determinará o que poderá ou não ser feito nele.
Influenciadores e especialistas são realistas quanto ao risco do Metaverso adquirir características proprietárias e se fragmentar em muitos Metaversos diferentes (o tal do Multiverso).
O resultado seria diferentes padrões de conectividade e comunicação entre esses muitos mundos, o que pode resultar em fricções a usuários, inconsistências técnicas e disputas de mercado.
O desejo maior, porém, é de que o Metaverso venha a ser um ambiente realmente aberto, sem domínio de uma ou mais empresas, de governos, de usuários ou quaisquer outros atores.
A ideia parece ser a de que ele deverá ser construído por meio de consenso, com todos podendo contribuir, e fundamentado em tecnologias de livros-razão invioláveis, como blockchain, que registrem as contribuições e impeçam quaisquer ameaças à descentralização.
Em termos de fundamentos, é consenso que este Metaverso aberto terá de observar os seguintes princípios:
persistência: existir da mesma forma para todos no tempo e no espaço;
sincronia: todos poderão utilizá-lo no mesmo tempo presente, sem delays, versionamentos etc.;
usuários simultâneos ilimitados: em tese, todos os quase 8 bilhões de seres humanos do planeta, mais prováveis identidades de Inteligência Artificial, terão de poder “habitar” o mesmo ambiente em tempo real, sem segregações em grupos ou em ambientes separados, por restrições tecnológicas ou de qualquer tipo;
economia totalmente funcional: tem de haver formas seguras e estabelecidas de negociar, receber e pagar quantias monetárias, o que, de fato, faz grandes plataformas ganharem vida;
abranger mundo digital, físico, redes públicas e privadas, plataformas abertas e fechadas: todos no mesmo ambiente, agindo e se comunicando por meio das mesmas regras e protocolos tecnológicos;
interoperabilidade de dados e ativos digitais: padronização destes aspectos, para que não sejam proprietários;
conteúdo feito por uma ampla gama de colaboradores: pessoas ajudam a criar e recriar o Metaverso constantemente, estando dentro dele, como já acontece na realidade física — a criação não é ditada por uma ou algumas organizações ou grupos específicos.
É uma aspiração ou sonho que já existe com o conceito de Web 3.0 também — ou melhor, que existe desde que a Internet comercialmente veio ao mundo, nos anos 1990.
Para entendermos sobre Web 3.0, vale revisitarmos as versões anteriores. Web 1.0 era o que se tinha nos anos 1990, até o início dos 2000, uma rede baseada em conteúdos e transações de dados.
Web 2.0 é onde estamos, a Web que somou assincronicidade, eventos e recursos que nos permitiram construir serviços digitais complexos como os de fintechs, por exemplo.
Web 3.0, inicialmente chamada de “Web Semântica” ou “Web Inteligente”, hoje abreviada para Web3, é defendida como uma Internet “pós-Big Tech”.
Ou seja, em vez de uma rede dominada por grandes empresas baseadas na captura e comercialização de dados de usuários (modelo que em maior ou menor escala tentamos reproduzir na maioria das startups de hoje), teríamos uma rede verificável, sem necessidade de confiança e permissão (blockchain resolve isso), autogovernado, com estado persistente (histórico) e pagamentos integrados.
É um ponto de vista bastante “economicista”, digamos, mas ajuda a entender para onde a tecnologia pode caminhar.
O Metaverso, como mundo ou mundos virtuais ou na interseção ou como sobreposição à realidade física, flerta com conceitos como NFTs (tokens não fungíveis) e “Economia do Criador” (todos podendo criar e vender qualquer coisa uns aos outros, sem intermediários), que se baseiam nas mesmas premissas.
Matthew Ball, investidor e autor de uma antologia sobre o assunto, o “The Metaverse Primer”, conceitua que o Metaverso ganhará existência de forma orgânica como algo aberto, em torno de sete pilares fundamentais:
Hardware
Computação
Conexão
Plataformas virtuais
Padrões e ferramentas intercambiáveis
Serviços de pagamentos
Conteúdos, serviços e ativos
Sem um destes pilares, o Metaverso não se concretiza. Por não haver como uma ou algumas organizações atenderem a cada fundamento plenamente, o Metaverso só se realizará por meio da contribuição de muitos atores agindo com base na economia.
Ben Thompson, que escreve um longevo boletim sobre tecnologia, o Stratcherry, diz ser cético à ideia de haver um único Metaverso e que “é provável que haja um bom negócio na construção de metaversos privados para empresas privadas”, com a Microsoft já se posicionou.
John Radoff, empresário que escreve sobre o Metaverso, acredita que o Metaverso é movido, basicamente, por criadores, dentro da noção de “Economia do Criador” (onde todos criam e vendem a todos, sem intermediários) e construído de forma descentralizada.
Há nessas aspirações, na verdade, algum fundo de utopia para com o livre mercado ideal (e em torno de filosofias políticas como o libertarianismo e até o anarcocapitalismo).
A construção real do Metaverso, porém, pode, também, passar longe de sonhos e idealismos, principalmente considerando-se a ascensão da China no cenário global e como ela e suas empresas de tecnologia, muito mais controladas, podem influenciar na construção de um Metaverso tangível e prático.
Isso nos dá algum fundamento para pensarmos em produto e designer em um ou em possíveis vários Metaversos, privados ou não.
A mensagem mais impactante que o Metaverso pode trazer, seja em sua forma mais longínqua e sonhada, seja como iniciativas pontuais e práticas (comunidades de games ou ambientes de escritórios ou lojas virtuais primitivos), é que a Gestão de Produtos e o Design para a tecnologia, onde cabe UX Design, UI Design etc., podem se reconhecer como ofícios da Web 2.0.
Isso quer dizer que podem ter de se reinventar profundamente ou até perder o sentido na Web3, principalmente se o Metaverso mais utópico e complexo for atingido dentro de algumas décadas, como se comenta.
Vamos nos deter um pouco nesse cenário extremo, de um Metaverso orgânico, único e sem governo. Por estarmos falando de blockchain e finanças descentralizadas, provavelmente veremos emergir nele novas formas de trabalho, colaboração, criação e transações.
Em um cenário assim, provavelmente muito do que entendemos por empresa, hierarquias, funções e atividades que desempenhamos podem até perder o sentido.
Indivíduos poderão ser tão relevantes quanto corporações à frente de “produtos” (criações) de sucesso dentro do Metaverso, seja uma narrativa, um novo ambiente, uma comunidade ou outra novidade inimaginável.
Em outras palavras, amadores dedicados poderão fazer tão ou mais sucesso (isto é, faturar) do que grupos organizados.
Vencedores levarão tudo e terão muito mais risco de perder tudo no dia seguinte. A selva competitiva será muito mais brutal, com modas ascendendo e caindo em instantes. Será como um trade de alta frequência ou scalping com esteróides, para ficarmos no terreno da financeirização de tudo.
Esse é o cenário mais distante. Como chegaremos gradualmente lá, se chegarmos, provavelmente reformularemos muita coisa pelo caminho e não de uma hora para outra.
Como as especulações são infinitas aqui, vamos considerar essa possibilidade como um tanto remota e pular para cenários mais tangíveis.
Digamos que Metaverso ganhe corpo como uma porção de mundos virtuais, minimamente intercambiáveis, mais como um colcha cheia de remendos (como praticamente tudo na realidade) do que um monolito perfeito.
Aqui, temos algumas implicações curiosas para produto e design. Uma delas diz respeito à Gestão de Produtos ou ao Design para que uma startup ou empresa crie seu próprio Metaverso, seu ambiente virtual.
Talvez seja uma “plataforma”, capaz de unir parceiros, clientes, fornecedores e outros atores, visando aproveitar o mesmo efeito de rede observado nas plataformas 2D atuais.
Ainda estaremos falando do mercado que conhecemos, concorrentes que conhecemos e podemos aplicar práticas já amadurecidas de produto e design (e desenvolvimento de software, já que sem ele nada se materializa em produto). Construir um Metaverso, aqui, não será muito diferente do que fazemos com um site ou aplicativo.
Outras implicações surgem se pensarmos em fazer Gestão de Produtos ou Design dentro de um Metaverso existente.
Digamos que o Facebook, que já conta com uma comunidade de quase três bilhões de usuários, tenha sorte, lidere o setor e crie um Metaverso onde todos queiram estar (e, mais hora, menos horas, por conta disso, todos necessitem estar, para poderem se comunicar, vender ou manter engajamento a marcas).
O Design, certamente, terá de se aproveitar de muito do que herda do game design para poder atuar nesse novo mundo. Talvez precise construir cenários, locais virtuais, avatares ou itens para serem consumidos e utilizados por lá. Talvez precise pensar em tarefas, narrativas, para envolver usuários.
Como dissemos no fim do artigo anterior, de fato é uma “viagem” pensar nesses termos.
Mas, ressaltando o objetivo do artigo, a ideia é divagarmos em possibilidades, até para não sermos pegos desprevenidos e, também, para tirarmos proveito das oportunidades que vêm com elas.
Quem não nos garante, afinal, que em 5 ou 10 anos, o hype não seja como construir cenários e avatares para o Metaverso X, Y o Z?
Vale lembrarmos que há menos de 20 anos nem sonhávamos que hoje estaríamos projetando e oferecendo serviços complexos por meio da tela reduzida de smartphones.
Quanto à Gestão de Produtos, é muito mais incerto pensá-la dentro de um Metaverso possível.
Se pensarmos em cada empresa tendo seu Metaverso ou seu imóvel ou território dentro de um Metaverso maior, talvez a Gestão de Produtos se aplique com o objetivo de construir e aprimorar esses ambientes como artefatos da tecnologia. Ainda é um trabalho fora do Metaverso, não dentro.
Porém, pensando que tenhamos um grande Metaverso onde as pessoas comercializam, trabalham, estudam, jogam, se comunicam e se divertem, talvez precisemos muito mais de pesquisa de clientes, marketing e planejamento de eventos, ações e artefatos 3D do que de produtos de software como conhecemos, para ter sucesso dentro.
O que isso demonstra é que muitas funções, ofícios e profissões às vezes nascem e são dependentes de uma base tecnológica específica (ou de uma fase de uma tecnologia), podendo perder relevância se essa base tecnológica mudar substancialmente.
Theo Priestley, um futurista, palestrante, consultor e autor de The Future Starts Now, prevê um cenário que possa nos levar ao Metaverso, mas sem perder as características de produtos individuais, como sites e apps que colocamos no mercado hoje.
Em “The Metaverse, the Multiverse and the Omniverse”, ele diz que podem haver várias instâncias do Metaverso, “tão prolíficas quanto sites e plataformas de blog”.
Essas instâncias do Metaverso agrupar-se-iam por classificação ou tipo, formando Multiversos. Podemos pensar, por exemplo, em um Multiverso destinado à Arquitetura em realidade virtual, outro só para Medicina, outro para Esportes, outro para Educação.
(No ramo imobiliário, existe até um fundo de investimento imobiliário, Metaverse Reit, o primeiro do mercado, focado em “terras” no Metaverso, para se ter ideia.)
Jon Radoff lista uma série de atividades — atividades é um conceito importante para ele no Metaverso, como veremos depois — que podem se beneficiar do assunto:
Jogos
Experiências sociais
Comércio imersivo
Colaboração
Mercado imobiliário
Viagens
Arquitetura, engenharia e design
Setor automotivo
Aprendizagem e Educação
Transmissões ao vivo
Esporte eletrônico (eSports)
Música ao vivo
Teatro imersivo
Considerações e exemplos interessantes sobre cada uma dessas categorias são comentados em “The Experiences of the Metaverse”.
Alguns exemplos inspiradores são o uso de realidade virtual no Shopify (comércio imersivo), colaboração no Spatial (colaboração), tours virtuais no MatterPort (imobiliário) e renderização de espaços por meio do NVIDIA Omniverse (arquitetura, engenharia civil e design de interiores).
Cada um desses Multiversos reuniria diversas instâncias do Multiverso daquela categoria específica. Assim, uma empresa X e uma empresa Y poderiam ter suas instâncias do Metaverso interoperando e se comunicando dentro de um ambiente ou comunidade maior.
Ainda, no topo dessa cadeira, segundo ele, estaria o Omniverso, que seria como uma camada de padronização e protocolos gerais, mais ou menos como as convenções de mais baixo nível, como TCP/IP, HTTP etc., sobre as quais a Internet funciona.
Provavelmente, em um cenário desses, teríamos alguma identidade única na camada do Omniverso e, com ela, poderíamos entrar e sair de tantos Multiversos quanto fossem criados.
Como é um exercício de imaginação interminável pensar nos formatos que o Multiverso pode ter, podemos pegar características amplas do que está sendo pensado e tentar associá-las a princípios e valores-chave que farão sentido para produto e design, principalmente design, nessa nova Web.
Um desses princípios, destacados por Radoff, é a imersão. Atualmente, é comum falarmos em atração, engajamento, retenção e associar jornadas de usuário a tarefas a serem cumpridas, jobs-to-be-done e similares.
No Multiverso, a visão é que essas metas darão espaço a uma busca maior por experiência imersiva. Isto é, passar mais tempo no ambiente, percorrê-lo, visitá-lo, vivenciá-lo, encontrar outras pessoas ou personagens, envolver-se em atividades dentro dele.
(Na visão de que uma ou algumas empresas saiam na frente na construção de um possível Metaverso, essas metas serão fundamentais para o sucesso da plataforma e sua fixação no imaginário coletivo. Nada diferente do que já aconteceu com redes sociais, mecanismos de busca e plataformas de conteúdo).
O design de games já estuda e lida bastante com imersão. O objetivo não é que o jogador pule de um estímulo-resposta a outro, mas as vivencie de forma orgânica, natural e fluída.
O foco está muito mais em um processo contínuo, para que o jogador literalmente saia da realidade física e viva em um mundo imaginário.
A imersão leva a algumas maneiras diferentes de encarar a interação, segundo Radoff. É aqui que seu conceito de atividades se torna importante.
Em vez das tarefas e fluxos a serem cumpridos, como temos hoje, a interação se dará por meio de atividades com outras pessoas, seja trabalhando, estudando, jogando, brincando.
Socialização será um ponto chave para o sucesso do Metaverso, assim como ocorre na realidade física.
Será por meio de atividades e de uma economia orientada ao criador que se verá efeitos emergentes do Metaverso, que podem levar a ondas de inovação crescentes.
Um exemplo que Radoff lembra é o dos hiperlinks. Apesar de criados com a simples finalidade de relacionar documentos textuais na web, eles se tornaram moeda de troca importante, fonte de reputação e ranking e um pilar tecnológico para os serviços digitais que temos hoje.
Nada disso foi planejado. Esses efeitos emergiram do uso que se deu a um artefato funcional simples.
Tomando-se outra abordagem de Radoff, que ele intitulada “As sete camadas do Metaverso”, também é possível ter algumas percepções do que poderemos encontrar no futuro:
Infraestrutura
Interface humana
Descentralização
Computação espacial
Economia do Criador
Descoberta
Experiência
Infraestrutura ditará como o Multiverso será em termos de funcionamento, regras, protocolos e bases fundamentais. Ela dirá o que pode ou não ser feito. Ela traz um fator inevitável: restrições, dentro das quais teremos de trabalhar.
Computação espacial refere-se a motores de geração de realidade virtual, relacionados muito de perto com a infraestrutura.
Interface humana também se relaciona à camada de infraestrutura. São os dispositivos que conectarão os humanos, por meio de seus corpos e seus sentidos, ao Metaverso.
Óculos 3D, holografia, dispositivos de realidade aumentada etc. entram aqui. Mas futurismos como implantes de chips subcutâneos, capacetes de leitura cerebral ou mesmo dispositivos neurais não são descartados.
Os demais aspectos (descentralização, economia do criador, descoberta e experiência) são todos fatores humanos, projetados ou (mais provavelmente) que emergirão do comportamento e das interações.
Um artigo no Medium, “Design principles from the Metaverse”, mais modesto na abordagem, vai ao encontro de alguns desses pontos, como a descoberta.
De uma perspectiva mais focada no design e em designers, Benjamin Goldman levanta questões interessantes em “The Metaverse Will Give Designers the Chance to Create a Better World”.
Ele não fala em imersão, mas usa a palavra “envolvente” para imaginar como o design para o Metaverso será. O conceito de experiência fluída, mais demorada, também ganha espaço, em função disso.
“Hoje, um bom design é intuitivo, fácil de usar e esteticamente agradável. Mas no metaverso, um bom design é algo totalmente diferente - é totalmente envolvente. [...]
“No metaverso, o design não está tão preocupado com a rapidez com que alguém atinge seu objetivo - está mais preocupado em saber se o jogador está imerso o suficiente para perseguir um objetivo em primeiro lugar. Isso pode significar viajar para encontrar amigos, em vez de encontrá-los instantaneamente em uma sala do Zoom; ou ir a um mercado, em vez de ter acesso a vitrines online onde qualquer coisa pode ser comprada a qualquer momento.”
Como o Metaverso se trata, basicamente, de interação humana e, em um nível mais amplo, de sociedades humanas, em escala global e sem limitações físicas, Goldman imagina que o design provavelmente terá de ir além de seus domínios comuns e incorporar disciplinas como a Economia, o Planejamento Urbano e a Antropologia a seus métodos.
De fato, designers poderão se tornar um pouco “deuses” em um Multiverso, com a capacidade de projetar como grupos ou sociedades humanas se comportarão.
Como, porém, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, como diria o Peter Parker, há também o risco de experiências projetadas para o Multiverso descambarem para comportamentos imprevisíveis.
“A visão do metaverso primeiro como uma sociedade humana, em vez de um produto ou serviço, será crítica para os designers por outro motivo: os designers serão forçados a confrontar a ética de suas decisões de design de maneiras muito mais profundas.” — Benjamin Goldman.
Goldmann não descarta um escrutínio muito mais rigoroso do poder do design no Multiverso e fala até na possível emergência de “direitos digitais”, algo como o direito de usuários (ou de seus avatares, de sua identidade multiversa, o que quer que seja) naquela nova realidade projetada.
Por outro lado, se o Metaverso for, de fato, descentralizado, construído sobre APIs abertas, processamento e regras distribuídas, também se tem a garantia de que nenhum “deus” prevalecerá e que as decisões estarão muito mais com indivíduos dentro do Metaverso do que em alguma entidade que o conduz a partir de fora.
Isto em princípio, é claro. Depois de um tempo, nada garante que monopólios, oligopólios e até bandos de mercenários se formem para tentar dominar o espaço a partir de dentro.
Há quem aposte que a chave para se criar um Multiverso mais voltado à exploração de oportunidades e criação de valores, em vez dos problemas que interações políticas e sociais sempre podem gerar (como preconceito, segregação, extremismo, violência etc.), esteja mais na economia do que em experiências projetadas.
A defesa é que, a partir do momento em que há uma lógica de oferta e demanda, possibilidade de ganhos financeiros e geração de valor e incentivo a trocas e negociação, padrões colaborativos ou competitivos emergirão naturalmente, criarão atração e determinarão a socialização de usuários.
Eric Elliott, programador experiente e um dos veteranos do Javascript, de alguma forma palpita nesse sentido, em “State of the Metaverse 2021”. É por isso que conceitos como blockchain são fundamentais.
Na opinião dele, o Metaverso deve contar com livros-razão descentralizados e plataformas de contrato inteligentes para transações transparentes, que não requerem permissão e sejam resistentes à censura (ou qualquer tentativa de burlá-los, modificá-los ou destruí-los).
“Você não pode ter uma economia verdadeiramente aberta se houver um ator central controlando os ativos, as capacidades do usuário e as contas bancárias. Somente especificações abertas e interoperáveis e plataformas de contratos inteligentes turing-completas descentralizadas, sem permissão, darão suporte à economia de propriedade necessária para que o metaverso prospere.” — Eric Elliott.
Assim como outros, Elliot aposta numa criação de valor sem precedentes para a economia no Metaverso. A financeirização de tudo, já em curso, pode de fato se concretizar em um ambiente com esses princípios.
“Acredito que o metaverso será um dia uma economia ENORME, representando até 10x o valor total de toda a economia global atual.” — Eric Elliott.
Um ponto pertinente que Elliot levanta sobre o Metaverso é o papel da IA nele. Como ele diz, é algo até então um tanto negligenciado.
A IA fornece diversas possibilidades para a construção e manutenção de um grande Metaverso, no seu sentido utópico, digamos.
Ela pode criar, regular e auditar as trocas financeiras (entre outras regras e padrões), pode criar outros seres que conviverão com humanos na virtualidade, pode ampliar a produção de ativos e de conteúdo e expandir o Metaverso, projetando e construindo mais ambientes.
Essa é uma possibilidade crítica a ser levada em conta. Talvez o Metaverso não seja o “último refúgio humano”, como se pensa (principalmente na ficção), já que o mundo físico tenderá a estar cada vez mais planificado e governado pela tecnologia.
A partir das interações e dados que usuários produzirem no Metaverso (e tudo, nele, poderá ser medido muito mais do que na realidade física), é viável que IAs aprendam cada vez mais sobre o comportamento humano para projetar mundos, experiências e artefatos a nós.
Em uma direção distópica, digamos que isso poderia levar a uma Matrix (do filme) quase perfeita.
Após um longo tempo trabalhando, convivendo, enfim, vivendo cada vez mais dentro de um Metaverso e cada vez menos na realidade física, é possível que vivamos cada vez mais em um mundo projetado, construído e governado por IA do que por humanos.
Some-se a isso arroubos transumanistas, como transferência de memória entre cérebros, troca de órgãos, criogenia e outras criações, visando prolongar a longevidade de indivíduos — talvez o corpo sobreviver, literalmente, por aparelhos, enquanto a mente habita o Multiverso — e tem-se uma conjunção de fatores viáveis.
É um bocado de futurologia, mas há pensadores que há algum tempo tratam da questão a sério.
Destilando essas várias visões, algumas mais próximas, outras bem distantes de nossa realidade ainda física, podemos antever alguns cenários (ou desafios) possíveis para produto e design no Metaverso:
O Metaverso nunca será atingido de fato e será feito de Metaversos específicos, como o do Facebook, o da Microsoft e de gama de “microversos” de startups e empresas. Como cada um desses espaços será um produto, a Gestão de Produtos segue seu curso e o Design foca mais no design de games, sem esquecer toda a parte de pesquisa de experiência do usuário.
Um ou alguns Metaversos privados, como o do Facebook, tornam-se dominantes, como ocorreu com a rede social. Provavelmente haverá uma corrida de usuários e consequentemente, de outras empresas, para o espaço, da mesma forma que ocorre com o marketing nas redes sociais. Cada empresa irá disputar partes daquela grande comunidade. Para isso, a Gestão de Produtos será deslocada para cuidar de planejamentos e desenvolvimentos específicos para aquele ambiente, na interface com equipes de tecnologia. O design adaptará metodologias de pesquisa e projeção de artefatos (provavelmente, muito inspirado no game design e no visual design) para o novo ambiente.
Há alguns multiversos amplos, como um destinado à educação, outro à arquitetura, outro ao trabalho etc., determinados por meio de um Omniverso maior e com padrões abertos. Design terá de se especializar em cada um desses “negócios”. Provavelmente, haverá regras de interação próprias em cada um, comunidades gigantescas e interesses diversos. Também, maior concorrência e efeitos emergentes da própria comunidade. Produto pode ser pensado também para atuar dentro desses “negócios” específicos (talvez conduzindo a descoberta e construção artefatos, itens e experiências para o ambiente) e para os aspectos técnicos do Omniverso (por exemplo, planejar e construir novas APIs e bases que somem vantagem competitiva à empresa dentro de cada Multiverso).
Há um grande Metaverso utópico aberto, descentralizado, para onde vários (senão todos) os aspectos das interações humanas migram. Não há como prever o que acontecerá por lá, se uma reprodução imaginária do que já vivemos fisicamente ou se experiências completamente novas e inesperadas. Design pode seguir seu curso, como se estivesse em uma realidade física, só que agora dentro de um mundo virtual. Saber o que outras pessoas esperam, suas expectativas, o que usam ou compram são perguntas que se manterão e alguém terá de investigá-las, possivelmente. Criar soluções para atender essas expectativas, idem. Produto é mais nebuloso. Voltar-se-ia ao marketing, apenas? Muitas lojas e vitrines de itens, supermercados de penduricalhos ou superpoderes para avatares? Talvez seja a realização da Matrix demais, com um mundo virtual rico, onde a maioria passa a viver, e uma realidade física que só tratará de manter aquele mundo virtual (e nossos corpos) funcionando.
Não se pode desconsiderar alguns problemas sérios no meio do caminho, é claro.
O Facebook, para ficar em uma das empresas mais polemizadas da atualidade, constrói seu Multiverso, suponhamos. Tem recursos para expandi-lo e oferecer experiências inesperadas de trabalho virtual, educação à distância, simulações, entretenimento. Domina o cenário.
Em pouco tempo, fruto da interação humana, grupos se formam, ideologias passam a predominar. A polarização vêm à tona. Experiências nada agradáveis, como apartheids virtuais ganham volume.
O Metaverso, que era para ser aquele ambiente vendido como uma utopia colorida da socialização alegre e colaborativa, torna-se um ambiente de ódio, violência, vandalismo (inclusive às marcas que deram às caras por lá), guetos e todo tipo de lixo e poluição imaginária.
Opositores passam a pregar que “o Metaverso” irá destruir o mundo, a economia, a democracia, o indivíduo etc. Esse Metaverso é regulamentado por clamor de indivíduos na realidade física, pais preocupados com filhos, empreendedores preocupados com a produtividade, o que quer que seja.
Aprendemos com a experiência, jogamos o que não serviu fora, usamos alguns aspectos virtuais que nos facilitam a vida, mas continuamos a viver e cuidar de nossa realidade física mais imediata. Tornamo-nos muito mais conservadores com aventuras futuristas, consequentemente.
Se hoje falamos em “vício” em redes sociais, imagine-se o que não seria ver indivíduos trocando a realidade física para viver completamente imersos, consumindo e experimentando uma sensação após outra na completa imaginação?
Quem sabe até sobrevivendo de alguma renda universal que a automatização produzirá, apenas para ficar criando arte, jogando e papeando mentalmente — o que pode levar pessoas ao sonho da liberdade irrestrita, do “não trabalho”, ou a uma sensação de inutilidade entediante.
Há muito o que divagar sobre o assunto e ele não se encerra em uma ou algumas abordagens. Provavelmente teremos de visitá-lo mais vezes, à medida que o mercado se movimenta a respeito.
Como aconteceu com a Internet comercial, em sua primeira década, principalmente, é mais provável que o Metaverso seja um território desconhecido, explorado e construído aos poucos, mais por aventureiros e empresas dispostas ao risco do que por iniciativas planejadas e com objetivos claros. A regulamentação e controle, como sempre, ficarão para depois.
Produto e design, como dito, podem ter de se transformar profundamente ou até correr o risco de saírem de cena, da forma como sistematizamos hoje, diante dessas possibilidades.
Para continuar o exercício reflexivo e imaginativo, algumas referências são válidas:
a antologia “The Metaverse Primer”, de Matther Ball, é um bom apanhado, principalmente em se tratando da infraestrutura e tecnologia que o Metaverso implica;
“Building The Metaverse”, uma apresentação de Jon Radoff, com 92 slides, traz muitos exemplos que já estão em curso e conceitos que podem ajudar a entender como o Metaverso será e como já vem sendo construído;
uma série de artigos de Radoff também é bastante acessível e útil: “The Experiences of the Metaverse”, “Market Map of the Metaverse”, “The Metaverse Value-Chain” e “9 Megatrends Shaping the Metaverse”;
artigos de Theo Priestley trazem visões sobre o Metaverso, tanto do ponto de vista do que está acontecendo quanto tentando imaginar o futuro;
“State of the Metaverse 2021”, de Eric Elliott, soma algumas percepçẽos a mais, como sobre IA no Metaverso;
“The Metaverse Will Give Designers the Chance to Create a Better World”, de Benjamin Goldman, traz uma visão do design e do papel de designers no Metaverso.
A sensação é essa mesmo: muitas perguntas, poucas pistas, nenhuma resposta definida. Talvez alguma descrença (“isso é viagem, futurologia demais, nunca irá acontecer de fato”, podemos estar nos dizendo). Ou: “isso continuará restrito aos videogames”.
Enquanto isso, Epic Games, Roblox, Facebook e Microsoft já pensam sobre como dominar e dar as cartas nesse novo jogo, que não tem nada de brincadeira: pode determinar muitos aspectos de nossa vida no futuro.
Como no título do artigo anterior, vale ficarmos com um olho no peixe (o nosso dia a dia, a Web 2.0, os serviços baseados em sites ou aplicativos para smartphones — a nossa “zona de conforto”), mas, como no ditado popular, é bom termos o outro olho prestando atenção no gato, isto é, no Metaverso, que pode não só roubar o peixe, mas levar toda a feira junto.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.