Don Norman, parte 2: as muitas ideias do “senhor design”
Entre tantas críticas de produtos e ideias, ele também criticou a si mesmo, reviu seus conceitos e nunca parou de pensar o Design. Hoje, repensa a educação e o papel social da área
No texto anterior, conhecemos um pouco das “muitas vidas” de Donald Arthur Norman, o Don Norman, criador de conceitos como “Design Centrado no Humano” e “User Experience (UX)”. Como vimos, é alguém que viveu praticamente toda a evolução do mundo dos computadores, na segunda metade do século XX, e ajudou a moldar o que poríamos em prática, em termos de design para tecnologia, neste século XXI.
No artigo em tela, vamos nos aprofundar no pensamento do “Senhor Design”. Podemos começar de uma forma mais dedutiva (do todo às partes) do que indutiva (da parte ao todo) para tal abordagem, como Norman certamente — por ser um adepto do pensamento sistêmico —, apoiaria.
Ao acompanhar a carreira de Norman e tudo o que registrou em livros, artigos e vídeos (o que continua fazendo até hoje), é possível enxergar um refinamento persistente e constante, uma “melhoria contínua” — design iterativo na melhor forma —, em suas próprias ideias e visões.
Como muitos designers (e outros profissionais) que vão amadurecendo na carreira e na vida, Norman começou focado em aspectos práticos e funcionais do trabalho. Depois, evoluiu para formas mais amplas de pensar e qualificar este trabalho. Mais à frente, entendeu que a evolução de uma área de aplicação não se satisfaz apenas nela, mas que precisa conversar com diversas outras áreas, do social ao econômico — de onde parte para visões e abordagens mais globais e desafiadoras.
De forma ampla, além de toda sua história e feitos, visto no artigo anterior, é possível depreender da caminhada de designer thinker de Norman três qualidades que o fizeram tão influente:
uma clareza e brilhantismo para expor ideias e criar citações, ao longo de seus escritos, que faz com que seu pensamento seja inspirador e facilmente compartilhado;
capacidade de criticar criações de outros, de revisar produtos e questionar os rumos do design de forma incisiva, mas sem ser deselegante ou desrespeitoso; pode até parecer insistente e ranzinza (consequências da experiência, talvez), mas não transparece ódio ou raiva e, sim, um espírito genuíno de melhorar sempre e seguir princípios e visões de longo prazo;
capacidade de se autoavaliar, criticar a si mesmo, reconhecer erros e modificar suas ideias e conceitos quando já não servem mais, tentando encaixá-los em uma nova visão de mundo e de design.
Essas características lhe deram meios para acompanhar e refletir sobre a evolução do design de produtos ao longo dos tempos e de não se fechar ou cristalizar pensamentos em abordagens tradicionais.
Mesmo que ele tenha se formado na lida com desktops de uma era pré-internet, e muito de sua experiência e exemplos ainda remetam ao que aprendeu lá, sua forma de pensar, holística e centrada no humano, permitiu a ele adaptar-se ao contexto de dispositivos móveis e das mudanças que vivemos neste século XXI.
Os tópicos a seguir aprofundam essas percepções com pitadas do que Norman escreveu e disse ao longo de sua prolífica carreira.
A guinada do útil ao emocional
Quando Don Norman migrou da produção acadêmica em Psicologia e Ciência Cognitiva para inspecionar uma usina nuclear e melhorar a usabilidade de painéis de aviões, já demonstrava uma certa inquietude com seu curso no mundo. Além de estudar a psicologia e o comportamento humano, também sentia vontade de aplicá-los no mercado.
Isso desembocou no The Psychology of Everyday Things (A Psicologia das Coisas Cotidianas, em tradução livre), escrito em meados dos anos 1980, quando tirou um período sabático na Inglaterra, e publicado em 1988.
Ali, com o livro seminal, que se tornaria referência e leitura obrigatória em Design, começaria um processo de revisão e ressignificação de muito do que tinha estudado e vinha aplicando até então, como ele mesmo comentaria em escritos posteriores.
Toda sua trajetória anterior havia sido focada, primeiramente, em aspectos funcionais da cognição humana, como memória, atenção e percepção. São habilidades necessárias ao desempenho de tarefas. Ainda assim, remetem a aspectos racionais, utilitários, destinados a finalidades. Há um fundo de “mecânico”, estímulo-resposta, no que embasava as teorias psicológicas de então.
Esse mesmo tratamento migrou para a Human-Computer Interaction (HCI), a área teórica que Don Norman ajudou a fundar. Havia, na época, anos 1980, um foco em tentar tornar os computadores pessoais, que chegavam ao mercado, mais fáceis de usar por leigos e não apenas ferramentas para programadores e geeks.
O foco, porém, estava muito mais em aparar arestas da própria tecnologia, para que usuários se adaptassem a ela, do que o contrário. Discutir necessidades e desejos (até sonhos, vontades etc.) dos usuários para, então, projetar e desenvolver a tecnologia, ainda era algo distante.
Faz sentido: a tecnologia era planejada e implementada, em sua maior parte, por pessoas com mentalidade de engenharia, mais preocupados com lógica, otimização e desempenho do que fatores humanos. A própria ergonomia, que deu origem à HCI, era bastante técnica e carregava uma mentalidade de engenharia.
Quando escreveu The Psychology of Everyday Things, Norman já tinha uma coceira, um incômodo, com aquela abordagem, mas provavelmente não sabia como expressá-la.
A descoberta do que aquilo significava foi ruminada durante anos, para ser esclarecida depois, quando Norman lançou Emotional Design: Why We Love (or Hate) Everyday Things (Design Emocional: Por que Amamos (ou Odiamos) as Coisas do Cotidiano), em 2003. No prólogo, ele destilou:
“Na década de 1980 [...] não levei as emoções em consideração. Abordei utilidade e usabilidade, função e forma, tudo de uma maneira lógica e desapaixonada — embora eu estivesse enfurecido com objetos mal projetados. Mas agora eu mudei. Por que? Em parte por causa dos novos avanços científicos em nossa compreensão do cérebro e de como a emoção e a cognição estão totalmente interligadas. Nós, cientistas, agora entendemos como a emoção é importante para a vida cotidiana, como é valiosa. Claro, utilidade e usabilidade são importantes, mas sem diversão e prazer, alegria e excitação, e sim, ansiedade e angústia, medo e raiva, nossas vidas seriam incompletas.” — Don Norman, em Emotional Design, 2003.
A aposta na utilidade e na funcionalidade do Design de Produtos na década de 1980 era uma inovação frente ao Design de décadas anteriores, ainda bastante calcado nas Belas Artes. A cultura que vinha da Ergonomia, da Engenharia, do Desenho Técnico e da HCI eram muito mais racionais do que as que alimentavam, por exemplo, a Arquitetura, o Design Gráfico ou o Design de Moda.
Com o passar do tempo e experiências ruins com produtos, Norman voltou atrás, primeiro em seus incômodos, depois burilando-os em escritos: “estética, atratividade e beleza”, como diz em The Design of Everyday Things, eram pontos importantes a serem levados em conta no Design de Produtos, junto com as emoções.
“[...] minha intenção não era denegrir a estética ou a emoção. Eu simplesmente queria elevar a usabilidade ao seu devido lugar no mundo do design, ao lado da beleza e da função. Achei que o tema da estética estava bem abordado em outro lugar, então o negligenciei.” — Don Norman.
A partir de muitas críticas, de que seu design era “usável, mas feio”, reformulou seus princípios e conceitos. Não só fez as pazes com a necessidade de beleza nos produtos, mas deu um passo além. No processo, formulou a teoria dos três níveis de processamento cerebral, explicada em Emotional Design:
nível visceral: aquele que diz “eu quero isto!”, que é automático, pré-programado, dado a julgamentos rápidos e instintivos — muito ligado à aparência;
nível comportamental: aquele que diz “eu posso fazer isto!”, que diz respeito ao uso de ferramentas e utensílios e a comportamentos cotidianos — ligado ao prazer e efetividade de uso;
nível reflexivo: aquele que me faz contemplar, refletir, pensar, encontrar lógicas e contar histórias — ligado à auto-imagem, satisfação e lembranças;
Norman ilustra e se alonga sobre o tema observando e meditando sobre três bules:
Como resume o professor Rafael Hoffmann, em uma apresentação sobre Emotional Design, o primeiro bule diz respeito à aparência (é visceral), o segundo bule diz respeito ao uso (é comportamental) e o terceiro bule — uma criação artística e provocativa — conta uma história e faz pensar (é reflexivo).
É interessante que, como comenta em uma postagem de 2018, Norman já conhecia as pesquisas de Daniel Kahneman que originariam seu conceito de Sistema 1 (nível cognitivo intuitivo) e Sistema 2 (nível cognitivo racional), sobre os quais comentamos em Abordagens e técnicas em Design Comportamental. Mesmo assim, Norman considera sua própria abordagem mais refinada (!).
“Em meu próprio trabalho, achei que dois sistemas eram uma simplificação muito grande, então usei três: visceral, comportamental e reflexivo. Meu nível reflexivo é basicamente igual ao lento [Sistema 2] de Kahneman. Mas tenho um nível de análise mais refinado para o sistema rápido [Sistema 1].” — Don Norman, 2018.
Essas passagens dão ideia de como Norman foi capaz de rever e aperfeiçoar seus conceitos, levar em conta críticas e permanecer relevante na área. Há muitos escritos em que ele comenta essa guinada, como no clássico The Design of Everyday Things, de 2013, a versão revisada e ampliada de The Psychology of Everyday Things, de 1988.
O prólogo de Emotional Design, em especial,é muito assertivo sobre essa migração do útil e do funcional para agregar, novamente, o emocional, o estético. É, talvez, um dos depoimentos mais bonitos e marcantes sobre uma mudança fundamental na indústria de tecnologia: da lógica e da máquina (engenharia) dando lugar ao ser humano (design).
Mesmo décadas depois, parece que Don Norman continua reelaborando e aparando arestas desse seu pensamento, como é possível ver em um depoimento em vídeo no canal do Youtube no Nielsen Norman Group (NN/g) — uma dessas pérolas que só alguém com suas oito décadas de vida consegue sintetizar de forma tão simples e, ao mesmo tempo, profunda:
“[...] muitas pessoas sempre perguntam: ‘Bem, eu entendo que isso é útil, mas como projetar para melhorar as emoções? Eu sempre falo sobre o último capítulo do livro, aquele que ainda não foi escrito. Porque a parte mais fraca do Design Emocional é realmente saber como construir essas emoções. Não podemos colocar emoções no produto ou serviço. As emoções estão nas mentes e corpos das pessoas, e por isso temos que descobrir como fazer um produto ou serviço que provoca na pessoa as emoções com que nos preocupamos. E isso ainda é uma arte — uma intuição.” — Don Norman, em vídeo, 2016.
Repensando Human-Centered Design, UX, Design Thinking
Em 1981, há 40 anos, portanto, Norman escreveu um artigo que já continha muito de seu exercício de crítica a produtos. E ele mirou contra um marco da tecnologia: o Unix, principal sistema operacional da época. Nem é preciso dizer que o texto, intitulado “The truth about Unix: The user interface is horrid” (“A verdade sobre o Unix: a interface do usuário é horrível”), gerou polêmica.
Unix existe até hoje, fornece bases e padrões para o Linux, por exemplo, e é adorado por programadores, administradores de redes e pessoal técnico, por causa de suas qualidades. Entretanto, para o usuário leigo, que lá no início dos anos 1980 começava a se familiarizar com computadores pessoais, era não só uma tela preta, mas uma caixa preta.
“Unix é um sistema operacional altamente elogiado. […] Mas apesar de todas as suas virtudes como um sistema — e é realmente um sistema elegante — o Unix é um desastre para o usuário casual. Falha tanto nos princípios científicos da engenharia humana quanto no simples senso comum. [...]” — Don Norman, 1981.
Na crítica, já se vislumbrava o nascimento do conceito de User-Centered Design (Design Centrado no Usuário), que mais tarde, em 1986, daria título ao livro User Centered System Design: New Perspectives on Human-computer Interaction (Design de Sistema Centrado no Usuário: Novas Perspectivas na interação Humano-Computador), organizado por Norman e Stephen Draper.
Note-se que Norman ainda não havia amadurecido para os aspectos emocionais e estéticos do Design na época, mas, focado em questões como usabilidade e interação, cunhou um conceito que hoje é um “mandamento” em praticamente todas as startups atuais.
É no livro, por coincidência, que aparece pela primeira vez, despretensiosamente, o termo “user experience”, a UX. A abertura da segunda seção do livro, “The Interface Experience”, esclarece, nas primeiras linhas, que os capítulos daquela parte tratam da “questão da qualidade da experiência do usuário”. O termo aparece mais vezes, na sequência, no artigo “Interface as Mimesis” (“Interface como Representação”, em tradução livre), de Brenda K. Laurel.
O exercício de Norman sempre revisar a si mesmo foi o que também popularizou a “User Experience (UX)” mais tarde. Quando ele entrou na Apple, em 1993, juntou todos aqueles conceitos, como usabilidade, interação, design centrado no usuário e outros herdados da Human-Computer Interaction (HCI) para estabelecer o conceito de UX.
O conceito, segundo Norman declararia depois, abrangia toda a experiência do usuário — naquela época, desde a compra de um desktop na caixa, até o ato de desembalá-lo, montá-lo, ligá-lo e usar seu sistema e seus softwares de forma amigável, intuitiva. Assim, UX foi um aperfeiçoamento de conceitos anteriores.
Mais recentemente, em 2016, em seu exercício crítico, Norman considerou a própria UX mal compreendida e utilizada no contexto atual da tecnologia, uma consequência que parece inevitável à popularização e democratização de quaisquer conhecimentos e práticas:
“Hoje, esse termo [UX] é terrivelmente mal utilizado. Ele é utilizado por pessoas para dizer ‘Eu sou um User Experience Designer. Eu faço websites. Eu faço aplicativos’. Eles não têm ideia do que estão fazendo, e eles acham que a experiência é somente aquele meio, o website ou o aplicativo ou sabe-se lá o quê. Não, [UX] é tudo! É a forma como você experiencia o mundo, é a forma que você experiencia a sua vida, é a forma que você experiencia um serviço, ou… sim… um aplicativo ou um sistema de computador, mas é o sistema como um todo.” — Don Norman, em vídeo ao NN/g, 2016.
Nesse elaborar e reelaborar o que pensava, o “Senhor Design” legou princípios para o Design Centrado no Usuário e UX que nos serve até hoje, como feedback, mapeamento, restrições, affordance (palavra sem tradução, algo como os atributos que um objeto ou produto tem e que viabiliza uma interação).
(Uma introdução aos princípios é facilmente encontrada na web, como neste artigo. O melhor, de qualquer forma, é ir direto à fonte; no caso, o livro The Design of Everyday Things ou, na versão em português, O Design do Dia a Dia).
Em The Design of Everyday Things, de 2013, Norman se permitiu comentar o conceito, naquele momento um hype no mundo da tecnologia e negócios, do Design Thinking. Mas ele não dourou a pílula e fez uma abordagem sóbria do conceito:
“O design thinking não é propriedade exclusiva dos designers — todos grandes inovadores têm praticado isso, mesmo que inconscientemente, independentemente de serem artistas ou poetas, escritores ou cientistas, engenheiros ou empresários. Mas porque os designers se orgulham em sua capacidade de inovar, de encontrar soluções criativas para problemas fundamentais, o pensamento de design tornou-se a marca registrada da empresa de design moderno.” — Don Norman, 2013.
Pouco antes, em 2010, ele já havia tratado criticamente o conceito, em um artigo, “Design Thinking: A Useful Myth” (“Design Thinking: um mito útil”). No texto, Norman diz, basicamente, que o Design Thinking é útil para a popularização do Design, mas considera um “mito” que “designers possuem algum processo de pensamento criativo e místico que os coloca acima de todos os outros em suas habilidades de pensamento criativo e inovador”.
Na verdade, na época e há tempos ele já observava o mundo a partir das lentes do System Think (Pensamento Sistêmico), uma corrente do século XX, com raízes até na ecologia, oposta à visão reducionista e mecanicista herdada das ciências exatas, que influenciou o mundo da Administração, Gestão e outras áreas gerenciais — tema amplo, com diferentes contribuições e interpretações, que vale um artigo próprio.
“O que é design thinking? Significa afastar-se do problema imediato e dar uma olhada mais ampla. Requer pensamento sistêmico: perceber que qualquer problema faz parte de um todo maior e que a solução provavelmente exigirá a compreensão de todo o sistema. Requer uma imersão profunda no tópico, muitas vezes envolvendo observação e análise. Testes e revisões frequentes podem ser componentes do processo. Às vezes, isso é feito em grupos: equipes multidisciplinares que trazem diferentes formas de especialização para o problema. Talvez o ponto mais importante seja afastar-se da descrição do problema e adotar uma abordagem nova e mais ampla. Parece muito especial, não é? Mas observe que tivemos ideias inovadoras e pensamento criativo ao longo da história registrada, muito antes de os designers entrarem em cena.” — Don Norman, 2010.
Porém, pasmem! Três anos depois, ano do relançamento de The Design of Everyday Things, Norman voltou atrás. Afetado pelas muitas críticas ao tratamento anterior do termo Design Thinking, escreveu “Rethinking-Design-Thinking” (“Repensando o Design Thinking”), em que declara:
“OK, retiro o que disse. Bem, um pouco [...] Estou aqui para dizer que agora repensei minha posição. Ainda mantenho os pontos principais do ensaio anterior, mas mudei a conclusão. Como resultado, o ensaio deveria realmente ser intitulado: Design Thinking: uma ferramenta essencial. Deixe-me explicar. [...]” — Don Norman, 2013.
E segue a explicação sobre a mudança de posição, acerca da qual refletiu enquanto escrevia The Design of Everyday Things. No ambiente polarizado de hoje, poderíamos simplesmente rechaçar a meia-volta de Norman como fraqueza, contradição, “vira-casaca”.
Entretanto, ele dá uma aula de debate intelectual na escrita, ao considerar a crítica de Bill Moggride à sua posição anterior, ao repensar visões e ao reconhecer o Design Thinking como uma ferramenta transformadora, de fato.
É uma boa amostra de sua atuação. Criticar abertamente, mas também rever e reconsiderar posições. É como no processo de design: estar disposto a rever constatações à luz de novas evidências, iterar sobre os resultados para aprimorá-los, não adotar conceitos cristalizados e absolutos (nem, muito menos, pré-conceitos — ou procurar afastá-los o máximo possível) e estar aberto e curioso às tendências dos tempos.
Críticas (até de porta papel higiênico)
A polêmica sobre o Unix, o Design Thinking ou até sobre a UX na atualidade não foram as únicas de Don Norman. Desde sua incursão no Design, ele foi um crítico por excelência de produtos e serviços, como os bules, torneiras, interruptores de luz e portas que comentou em The Psychology of Everyday Things.
Um dos exemplos de crítica é de um fone de ouvido da LG, de 2018. Um caso até de defesa do consumidor. “Sem visibilidade. Diferenciação tátil insuficiente entre os controles. Não há rotulagem de qual lado é direito e qual é esquerdo. Isso é importante, porque são fones de ouvido estéreo e porque os botões de aparência e sensibilidade idênticos fazem coisas diferentes nos dois lados do dispositivo”, resumiu Norman.
Smart watches (relógios inteligentes) também não foram poupados, em 2014. “Eu estava dormindo profundamente quando meu relógio começou a vibrar no meu pulso. Chrrr, chrrr, chrrrr, chrrrr — continuou, forte o suficiente para me acordar. Eram 4h30. Olhei para o relógio (meio tonto): a bateria está quase esgotada, dizia o símbolo.”
Norman brinca até com suportes para papel higiênico. Em artigo, de 2019, sugere redesign ou até soluções que os façam desaparecer. Cita uma alternativa japonesa (segundo ele, “água morna e agradável”). Mas diz que não quer ser autoridade mundial no assunto. “Já é ruim o suficiente que eu seja a autoridade mundial em portas que são difíceis de abrir”, brinca.
Em 2019, também, Norman também escreveu sobre design e envelhecimento. Em um artigo na Fast Company, chama atenção para o envelhecimento da população (como ele próprio, na ocasião com 83 anos), que necessita de produtos e serviços dotados de acessibilidade para idosos. Não se trata apenas de necessidade, mas de um mercado crescente. No artigo, ele cita problemas, desafios e exemplos de soluções.
Uma de suas críticas mais polêmicas, porém, foi contra o design da Apple, também na Fast Company, em 2015. Como a empresa tem um grande número de fãs, não faltaram defesas enfurecidas dos conceitos estabelecidos por Steve Jobs.
Em How Apple Is Giving Design A Bad Name (“Como a Apple está dando má fama ao design”), Norman e o colega Bruce Tognazzini, ex-funcionário da Apple, como vimos no artigo anterior), discorrem longamente sobre como a Apple abandonou princípios de design (que ela própria ainda tem documentados) para focar apenas em beleza. Alguns comentários são fortes.
“A Apple está destruindo o design. Pior, está revitalizando a velha crença de que o design é apenas para fazer as coisas parecerem bonitas. [...]
“A Apple de hoje eliminou a ênfase em tornar os produtos compreensíveis e utilizáveis e, em vez disso, impôs o design minimalista da Bauhaus a seus produtos.”
Pertinente ou não, o artigo é bem argumentado e se baseia nos próprios princípios de design de Norman e em diretrizes da própria Apple. Vale ler, mas com a consciência de que a Apple é, hoje, “apenas” a empresa mais bem avaliada do mundo, maior do que o Produto Interno Brasileiro (PIB) brasileiro e atrás, somente, dos oito países mais ricos do mundo em 2019, para comparação.
O que fica de lição é que Norman não se intimidou ou deixou de criticar produtos e serviços, mesmo sendo alvo de críticas contrárias durante toda a carreira. Foi um grande debatedor de ideias e conceitos, mais do que ataques simplistas e rasos.
Design baseado na comunidade e educação em Design
Tendo transitado do design preocupado com usabilidade e funcionalidade, no início da carreira, para o design centrado no usuário e evoluído para um design mais “sistêmico”, parece natural que Don Norman não conseguisse parar por aí e exigisse mais de si mesmo.
Sua inquietude o levou a patamares muito mais grandiosos e distantes do design do dia a dia e voltado apenas para a tecnologia ou ao mercado.
Uma dessas frentes é o que ele chama de Community-Based Design (Design Baseado na Comunidade, em tradução livre). Trata-se de mais uma das tantas revisões de seus conceitos, como cita em um artigo de 2019, co-escrito com Eli Spencer, fruto de reflexões de uma palestra que deu em uma conferência:
“Propomos uma mudança radical no design, passando de especialistas que projetam para pessoas a pessoas que projetam para si mesmas. Na abordagem tradicional, os especialistas estudam, projetam e implementam soluções para as pessoas do mundo todo. Em vez disso, propomos alavancar a criatividade dentro das comunidades do mundo para resolver seus próprios problemas: este é um design voltado para a comunidade, aproveitando ao máximo o fato de que são as pessoas nas comunidades que melhor entendem seus problemas [...]. Os especialistas se tornam facilitadores, orientando e fornecendo ferramentas, kits, workshops e suporte.” — Don Norman e Eli Spencer.
Como diz em outro artigo, em que conta sua história em relação a esta abordagem de design, esta “filosofia recebeu muitos nomes, design participativo, co-design e pesquisa participativa baseada na comunidade, entre outros termos”.
É um pouco do que se tem visto em relação ao Service Design (Design de Serviços) em serviços públicos, por exemplo, uma abordagem mais abrangente e holística do que UX.
O assunto é inspirador e pode merecer até um artigo futuro, para ser aprofundado. Em resumo, porém, é uma abordagem para levar o design além dos negócios e dos produtos de tecnologia e empregá-lo em benefício da política, do desenvolvimento ambiental e das melhorias sociais.
Utiliza os mesmos princípios do Design Centrado no Humano (Human-Centered Design) — resolver os problemas fundamentais (e não sintomas), ser centrado nas pessoas, ser centrado em atividades dos sistemas sociotécnicos complexos (não apenas em componentes isolados), iteração rápida para prototipação e testes — e incentiva outros pontos interessantes, principalmente para designers, os quais passam a atuar como facilitadores:
cultivar uma mentalidade participativa, não a de um especialista;
tornar o processo baseado em design, não conduzido por design;
fazer design para pessoas, não para personas;
ter objetivos de engajamento, não abstrações;
aumentar ativos, não apenas minimizar déficits.
O artigo que relaciona esses pontos é uma ótima fonte para se aprofundar a respeito. “My History with Community-Centered Design” (“Minha História com Design Centrado na Comunidade”) contém um bom resumo inicial da abordagem e como Norman chegou (lentamente, durante décadas, segundo ele) até ela.
Outro artigo de seu site, quando foi homenageado como um “guru” do design na Índia, também vai ao encontro do conceito. Por fim, “My Dream: The Rise of the Small” (“Meu sonho: a ascensão do pequeno”), que trata sobre como indivíduos, sozinhos ou em grupos, podem liberar a criatividade para inovações, também advoga a favor da filosofia.
O Design Baseado na Comunidade tira o designer do centro do processo para transformá-lo em um facilitador, um mediador, conforme Norman. Isto o leva a outra de suas grandes atenções em anos recentes: a educação em Design, outro tópico tão vasto e rico quanto os citados acima.
Em um artigo mais acadêmico, “Changing Design Education for the 21st Century” (“Mudando a educação em design para o século 21”), de Norman e Michael W. Meyer, de 2020, há várias propostas neste sentido. Os destaques deixam claro uma certa “grandiosidade” do projeto:
Designers podem agregar valor especial a quase todas as organizações: governos, organizações não governamentais (ONGs), empresas, saúde, etc.
O sistema atual de educação em design raramente prepara os alunos para os desafios que enfrentarão.
Os elementos mais valiosos da perspectiva e do processo do designer raramente são ensinados.
Outras profissões eruditas, como Medicina, Direito e Negócios, fornecem excelentes conselhos e orientação embutidos em suas próprias histórias de profissionalização.
Fazer mudanças requer um grande esforço de longo prazo para desenvolver uma plataforma de design e práticas educacionais.•
Solicitamos um programa para mover a profissão de design, capaz de realizar plenamente o valor do design no século XXI.
Conforme Norman declara em seu site, a busca por repensar a educação em design é sua principal ocupação agora, em sua aposentadoria. Um pouco dessa intenção é documentada em “The Future of Design Education” (“O futuro da educação em design”) e segue em iniciativas como Future of Design Education.
Tais propostas nascem e são discutidas no Design Lab, da Universidade da Califórnia em San Diego, onde Norman atuou durante boa parte da vida e da qual é emérito.
Se as intenções de Norman ainda darão frutos, é algo para acompanharmos. Como a própria história dele deixa claro, o Design passou por grandes mudanças ao longo de sua vida, de uma forma difícil de consolidar em algum currículo universitário.
Talvez, quem sabe, Norman em algum momento reveja seus conceitos de novo, por que não? O fato é que quanto mais artificial tornamos o mundo, mais estamos lidando com design e precisando dele e, naturalmente, terá de haver visões e princípios para nortear sua prática. Norman, inquieto e “metido” que sempre foi, no bom sentido, continua labutando nessa frente e talvez continue gerando contribuições inspiradoras.
Como o homem não para, outro de seus projetos é escrever mais um livro, “sobre o papel que o design desempenha no estado atual do mundo e como ele pode contribuir para ajudar a resolver os principais problemas sociais”.
Considerações
É um bocado o que Don Norman tem pensado e continua pensando. Difícil até de acompanhar. Afinal, são quase 86 anos e vida, boa parte deles trabalhando. Como ele mesmo fez, talvez a melhor lição seja pegar seus principais livros, artigos e depoimentos e digeri-los aos poucos, quem sabe até criticá-los (um ótimo exercício). O curto prazo é feito de muito ruído. O longo prazo filtra o que é importante à história.
Norman é uma referência não só pelo que ensinou (foi um grande professor, mais do que todas suas outras peripécias), mas também pelo que inspira: por não ter medo da crítica e do debate, de rever seus conceitos (e reconhecer equívocos) e tentar enxergar sempre à frente. É imparável. É o “Senhor Design”, um designer thinker nato, com seu lugar na história e, certamente, na carreira de muitos designers atuais e futuros.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.