Dilemas em Design Comportamental
Discussões sobre o pântano enevoado da manipulação e do vício comportamental e como “padrões sombrios” nos levaram a temer e questionar a aplicação do Behavioral Design no mercado
Um caso hipotético, para pensarmos. Você está com a carreira consolidada e trabalha na equipe de design e pesquisa de UX de uma startup global. A empresa desenvolve um produto que combina gamificação com cupons de desconto. Há aplicação de técnicas comportamentais de ponta, dignas de ficção científica, para atrair e engajar usuários. Eles não só se divertem como acumulam pontos e ganham dinheiro de volta (cashback) a partir de compras.
Passados alguns anos, o produto tem mais de um bilhão de usuários, o app ampliou serviços e sua gamificação é contagiante. Há relatos de usuários que se desfizeram de economias por causa app, outros se tornaram acumuladores de cupons às custas de limites de cartão de crédito estourados; o que era para ser benéfico e entreter usuários tornou-se prejuízo e consequências indesejadas.
Deveríamos ter nos atentado às nossas técnicas de Design Comportamental antes de aplicá-las? Melhor seria ter incluído psicólogos clínicos para estudar as consequências à medida que avançávamos? Como nos desfazer da imagem, agora reforçada por ativistas, mídia e políticos, de que manipulamos usuários apenas em prol dos interesses do negócio?
Ou, nada disso! Nossas intenções foram as melhores possíveis. Escolhas e, consequentemente, responsabilidades, são inteiramente dos usuários. Não obrigamos ninguém a uso abusivo de nossos serviços. Inclusive, há termos de uso e responsabilidade e demos oportunidades para os usuários consentirem ou não com eles. Cada um faz o que quer de sua vida e não há como ser babás de adultos.
A situação hipotética, mas que pode muito bem se aplicar a produtos reais, leva ao segundo texto de nossa série sobre o uso das Ciências Comportamentais no Design de Experiência do Usuário.
Neste artigo, trataremos dos dilemas que a associação entre Ciências Comportamentais e UX Design nos colocam. O texto está estruturado em duas grandes seções:
A primeira mostrará o quão amplas, profundas e abertas são discussões em torno de manipular comportamentos, o que sabemos sobre “vício comportamental” e o quanto temos a percorrer em um pântano enevoado, uma analogia para um território em que é difícil seguir em linha reta e enxergar com clareza aonde devemos ir.
A segunda tratará sobre como chegamos às preocupações atuais em torno do Design Comportamental, relembrando um pouco da história da indústria de tecnologia e como se tornou condenável usar conceitos maquiados de “design centrado no usuário” para ganhar dinheiro sobre os mesmos, o que deu origem a expressões como dark patterns (padrões sombrios), dark nudge (cutucadas sombrias) e sludge (lama, lodo, imundície).
Relembrando o que dissemos no primeiro texto da série, que tratou de abordagens e técnicas em Design Comportamental: “há uma linha tênue — e questões filosóficas e políticas profundas — entre o que um indivíduo realmente quer ou necessita e o que uma organização ou grupo de poder (empresa, governo etc.) tenta influenciar esse indivíduo a querer ou necessitar”.
É o ponto central do artigo em tela. A contextualização que segue, por sua vez, fornecerá argumentos para o terceiro e último texto da série, em que abordaremos propostas para um Design Comportamental ético.
O pântano enevoado
Optamos por usar o termo “dilemas” e não “problemas”, no título do artigo, porque o campo contém mais questões em aberto do que caminhos fáceis e binários, tais como: “certo vs. errado”, “bem vs. mal”, “vítimas vs. vilões”.
Tem-se tornado comum ouvir que produtos digitais causam “vício” ou que usam de técnicas de Design Comportamental, nudge, dark patterns, entre outros, para “manipular” ações e decisões de usuários.
Por “vício”, é comum entendermos o tempo que um usuário dedica ou despende a um serviço digital, fornecido por meio de um aplicativo ou site. Pela associação umbilical entre apps e smartphones, também costumamos generalizar o dispositivo (smartphone) como objeto do vício.
Por “manipular”, entendemos a ação de induzir um usuário a se confundir, ao engano, a executar ações motivados por impulsos, automatismos, emoções, ou seja, sem pleno domínio de suas capacidades racionais de avaliação e decisão.
Por estas “ações”, podemos generalizar para uso recorrente de serviços digitais, por meio de aplicativos ou sites, e gastos financeiros em tais serviços.
“Uso” é associado a aplicações que se utilizam de dados comportamentais de usuários para lhes exibir anúncios personalizados ou para vender esses dados a outras empresas.
Gasto é relacionado a compras de itens, físicos ou virtuais, como, por exemplo, produtos físicos em e-commerces, planos ou mensalidades em serviços de assinatura e itens virtuais em games.
Tudo isso, porém, ainda é senso comum; noções superficiais que adotamos rapidamente para nos guiarmos no dia a dia — e que podem nos levar de volta às visões binárias citadas logo acima.
A discussão é mais difícil porque não conseguimos definir, delimitar, precisar, o que é “manipulação”, assim como não conseguimos cravar, quanto à moral, se manipulação é essencialmente negativa, ou se haveria “manipulação boa” e “manipulação má”.
Trocar manipulação por persuasão, convencimento, influência, de pouco nos serviria, porque não muda a substância da discussão e nos obrigaria a analisar cada uma das demais palavras com a mesma precisão e, consequentemente, mais dificuldades.
Por isso, a analogia a um “pântano enevoado”, em que atola-se a cada passo e não se consegue enxergar para onde se está indo. Vamos nos deter nestes dois pontos, “manipulação” e “vício”, para entender porque Design Comportamental situa-se nesse território.
Vício
Vício, historicamente, em psicologia clínica, é definido como dependência química de uma substância, levando a comportamentos prejudiciais e até destrutivos.
Entretanto, avanços em ressonância magnética funcional (fMRI), ferramenta que revolucionou a pesquisa neurológica, sugerem que vícios comportamentais são mais parecidos a vícios de substâncias do que se imaginava, segundo a Psychology Today.
Muito tem se estudado para tentar estabelecer se o uso de dispositivos eletrônicos, como computadores, videogames e smartphones, também podem provocar vício comportamental.
Apesar de haver relatos de que tais dispositivos podem causar dependência similar ao vício de substâncias e haver estudos que defendem essa linha, até o momento os mesmos não são distúrbios oficialmente reconhecidos, conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).
Apenas o uso abusivo de jogos eletrônicos (gaming disorder) foi incluído, até agora, na Classificação Internacional de Doenças (CID), pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Mesmo assim, ainda não é um vício, mas um fator que pode levar a este.
Quanto ao processo de uso de aplicativos e sites, sabe-se menos ainda. Interferências no cotidiano, quaisquer tecnologias e criações podem causar, mas daí a se serem reconhecidas como causa de malefício, é algo que requer muita ciência rigorosa e a longo prazo.
Ou seja, mesmo que falemos em “vício” ou em “viciar usuários” em apps, residimos no senso comum. Não parece nos servir no momento, embora seja interessante acompanhar a área.
Manipulação
Etimologicamente, “manipulação” pode ter vários significados. Um tem a ver com o ato de utilizar as mãos para fazer algo. Outro, pejorativo, e que condiz mais aqui, significa manobra oculta ou suspeita que visa à falsificação da realidade.
Filosoficamente, veremos que a dificuldade de conceituação é bem maior.
Primeiro, manipulação pode ser considerada de um ponto de vista global ou ordinário. O conceito de “manipulação global” é comum em filosofia do livre arbítrio. Podemos pensar nela como a manipulação “total” de um indivíduo, seja por meio sobrenatural, engenharia neurológica ou doutrinação e condicionamento psicológico (algo como “lavagem cerebral”).
Embora, aparentemente, haja técnicas (como a hipnose) que podem sugerir manipulação global, não é algo que se aplica facilmente e de maneira universal a todos os indivíduos. (A aplicação de drogas em uma pessoa para tal finalidade não é considerada aqui porque seria crime, mais do que manipulação).
Talvez até imaginemos a aplicação da Ciência Comportamental como dotada de algum “poder oculto”, capaz de abduzir indivíduos de seu estado de consciência e transformá-los em marionetes. Mas estaríamos no mundo da fantasia.
Embora algumas pessoas pareçam suscetíveis (por fragilidade psicológica, dano neurológico, depressão, entre outros fatores) a serem manipuladas dessa maneira, como se “saíssem de si”, também não parece ser a regra à maioria dos indivíduos saudáveis que participam da vida econômica, na qual usam aplicativos e realizam compras.
(Vamos descartar, também, os experimentos de Benjamin Libet, que demonstraram que uma ação, como mover o braço, por exemplo, inicia-se em um nível neurológico antes de se manifestar na consciência, o que, para alguns, colocaria em xeque o livre-arbítrio, porque também há controvérsias a respeito.)
Sem evidências de que se consiga, efetivamente, aplicar uma técnica e tornar outra pessoa um autônomo determinístico, fadado a ser operado como um boneco, resta pensarmos em manipulação ordinária, aquela que, em geral, aproveita-se de algum lapso racional nosso.
A névoa se torna mais espessa aqui e o terreno, mais enlameado. Temos dois problemas fundamentais: identificação e avaliação.
Identificação
As principais questões e problemáticas aqui são:
Desvio: uma forma de identificar manipulação ordinária é como um desvio, uma rota paralela à deliberação racional. Muita da nossa imaginação sobre Marketing e Publicidade se encaixa aqui, como se comerciais tivessem poderes subliminares de mexerem em aspectos ocultos (neuronais, inconscientes) e nos fazer agir fora da razão. Como explicar, porém, o caso em que alguém convence outro, por argumentos completamente racionais, a tomar determinada decisão que possa prejudicá-lo?
Trapaça: outra abordagem é considerar que, tudo bem, podemos ser manipulados mesmo racionalmente, e que isso ocorreria, então, por indução ao engano. A típica sacanagem ou malandragem. O ponto em aberto é que se manipulação é essencialmente enganar, o que dizer da chantagem emocional, da pressão ou mesmo do charme (influência, sedução etc.), que não necessariamente envolvem engano, mas também podem levar a decisões que nos prejudicam?
Outros: há quem considera que manipulação pode demandar vários aspectos ao mesmo tempo, como pressão, sedução, trapaça ou desvio da razão, combinados ou em momentos distintos. Essa última abordagem pode ser frágil porque acolhe muitas definições possíveis. Quer dizer que até a conversa entre parceiros de relacionamento sobre a cor do sofá novo seria manipulação?
Resumo: não temos uma definição precisa, clara, delimitada, cravada, de manipulação. Ela é capaz de abarcar desde extremos como lavagem cerebral irreversível até a conversa mais frívola do dia a dia.
Se o primeiro extremo parece, à primeira vista, um caso claro de manipulação e o segundo, um caso claro de não manipulação, pior ainda é tratar o que reside no meio do caminho.
Avaliação
Outra questão em aberto é quanto à moralidade da manipulação:
Manipulação como algo errado: tendo definido ou não a identidade de manipulação, podemos querer encará-la moralmente, e um dos primeiros aspectos que nos ocorre é ela ser ou soar moralmente “errada”. É uma percepção do senso comum que rotineiramente adotamos. O que dizer, porém, se a manipulação for empregada por um investigador para revelar um escândalo de corrupção política ou uma ameaça terrorista? É moralmente “errado”?
Manipulação como dano: aqui, podemos considerar vários tipos de prejuízos, de emocionais a materiais. Parece fazer sentido para golpes e mesmo pequenos truques de e-commerce. Mas dificilmente se sustenta frente a práticas que trazem benefícios. Tome-se, por exemplo, lei antifumo. Apesar de hoje nos ser fato dado, quando implementada, tal lei soava como contrária ao livre-arbítrio ou medida de governos para lucrar com multas. Anos de campanhas, punições e incentivos, tais manipulações trouxeram benefícios coletivos.
Manipulação como violação da autonomia: vai de encontro à questão de contornar a razão. Manipulação, aqui, é estratagema que não usa de convencimento racional para levar alguém a uma decisão ou ação. Seria um “enfraquecimento” da decisão individual. Mesmo assim, por mais que uma pessoa possa ser influenciada a agir de determinada forma, não há nada que lhe retire, de fato, seu poder de decisão, portanto, não há ameaças claras à autonomia.
Manipulação de pessoas como objetos: um último argumento moral é considerar pessoas como coisas a serem “operadas”. É uma argumentação que pode casar com negócios que exploram comportamentos de usuários em benefício próprio (e com governos ditatoriais). Ainda assim, moralmente, pode-se tratar pessoas como objetos e manipulá-las em benefício de si mesmas.
Resumo: também não conseguimos bater o martelo sobre se manipulação é moralmente negativa. Considerando-se que seja tanto positiva como negativa, mais complexidade: definir o que é positivo e o que é negativo, encontrar medidas (bases) para tais definições, considerar como tais medidas atuam em grupos, contextos e culturas diferentes. No extremo, poderíamos ficar paralisados no senso comum ou querer avaliar caso a caso.
A discussão poderia ser estendida ad infinitum. O que dizer da criança, que não é tão “racional” quanto um adulto, mas que manipula estes para conseguir o que quer?
Tais dificuldades explicam porque vivemos embates argumentativos intermináveis sobre se nudge é ético ou não, se Design Comportamental prejudica usuários ou não e, por que, de acordo com nossa educação, cultura, contexto etc., tendemos a tomar partido de um lado.
Se solidarizamos com vítimas de golpes ou condenamos até pequenas astúcias, certamente tendemos a considerar qualquer interferência em decisões individuais como prejudiciais. (Ou, na tentativa altruística de querer implementar “o melhor” a outros, correr o risco de gerar consequências negativas imprevistas).
Se somos flexíveis e aceitamos um certo grau de malandragem, é provável que consideremos “frescura” atenção a tantos detalhes e nem liguemos (ou implementemos sem peso na consciência) a pequenas enganações comerciais como parte “do jogo”.
Pode parecer que nada disso ajuda e só nos confunde mais. O que toda essa explanação carrega, porém, são duas lições fundamentais:
há necessidade de estudo, pesquisa e buscas tanto filosóficas como científicas persistentes para subsidiarmos estratégias e práticas para além do senso comum;
Design Comportamental (ou Design, de forma ampla), por mais que torçamos o nariz à palavra, requer política, onde o que vale são embates e acordos de maioria em torno de posições (preferencialmente fundamentadas, item 1); em outras palavras, cabe a nós, em grupo, definirmos o que é “certo” e “errado”, com a sabedoria de que isso pode mudar conforme mais subsídios temos ou conforme grupos mais fortes e influentes assumam o campo das definições.
É um bocado para refletirmos. A seguir, vamos descer a algo mais mundano e recapitular os subsídios que já temos.
Como chegamos a este ponto
Um dos livros que citamos como referência a técnicas de Design Comportamental, no primeiro artigo desta série, foi Hooked: How to Build Habit-Forming Products (na edição em português: Hooked (Engajado): Como construir produtos e serviços formadores de hábitos), de Nir Eyal.
Hooked significa, literalmente, “fisgado”, podendo aludir tanto à captura de usuários (como peixes, a partir de “iscas” comportamentais) e a estados como “fissurado” ou “dependente”, típicos do vício.
Parece um bom descritor àquela “coceira” de conferir novidades mais recentes no feed, abrir a lista de notificações em busca da mais quente, procurar fotos sedutoras no Instagram (ou matches no Tinder) ou de se entregar a uma madrugada de imersão em games.
Quando o livro foi lançado, em 2013, ainda vivíamos uma certa euforia da década anterior com as big techs, sobretudo o Facebook, e o surgimento de startups disruptivas. O iPhone tinha cinco anos. Éramos mais ingênuos e empolgados com aquelas empresas cheias de ambientes coloridos que iriam “mudar o mundo”; e o design baseado em Ciências Comportamentais mostrava-se uma ferramenta eficiente para realizar tal missão.
Portanto, não havia tanto pudor como hoje em se falar em viciar usuários, mantê-los conectados a maior parte do tempo e outros hábitos do tipo.
Até que fatos ou versões nada condizentes com ambientes coloridos ou empresas que mudariam o mundo vieram à tona. Como lembra Stephen Wendel, em outro livro do artigo anterior, Designing for Behavior Change: em 2014, o New York Times escreveu, em uma reportagem:
“Para o Facebook, somos todos ratos de laboratório” — NY Times, 2014.
A matéria revelava que a rede social, sob a desculpa de melhorar a experiência do usuário, manipulou o feed de notícias de mais de meio milhão de usuários para um estudo psicológico, o que levou a protestos e a um pedido de desculpas do líder do estudo.
O próprio Wendel diz que o estudo foi mal dimensionado e compreendido, mas serviu como um escândalo primordial. Google, Amazon, Apple, Uber e outras empresas construídas sobre tecnologia e quantidades colossais de dados de usuários não passaram imunes ao mesmo escrutínio e a críticas, logo em seguida.
Pouco depois, o Facebook estava enredado no escândalo Cambridge Analytica, um esquema de uso de dados psicométricos de milhões de usuários, usado para disseminar fake news e apoiar a campanha de Trump nos EUA e no Brexit, no Reino Unido, ambos em 2016.
Não estávamos somente testando emoções de usuários, mas, por meio de cliques, curtidas e técnicas de Design Comportamental, influenciando mecanismos da própria Democracia.
A história prosseguiu com muito mais escrutínio, multas, escândalos, regulamentações de privacidade (vide GDPR e LGPD) e movimento contra grandes empresas de tecnologia.
Ao mesmo tempo, usuários, influenciados pelo noticiário e já um tanto cansados do tempo (e dinheiro) desperdiçado em algumas plataformas, também passaram a questioná-las, a excluir logins e entrar em dietas e retiros de redes sociais, aplicativos e uso de smartphones.
Profissionais, da mesma forma, começaram a questionar o que faziam em empresas de tecnologia para atrair, reter e engajar mais usuários ou, em bom português, “viciá-los”, prendê-los e fazê-los gastar mais tempo e dinheiro.
Muitos casos poderiam ser citados desde então, o que alongaria o texto sobremaneira. Mas para ficarmos em um mais recente e emblemático, lembremos da Proposition 22, ou Prop 22, como ficou conhecida, na Califórnia, a medida eleitoral, de 200 milhões de dólares, financiada por Uber, Lyft, DoorDash, Instacart e Postmates, para que seus motoristas não adquirissem direitos trabalhistas e continuassem como autônomos.
Até campanha de apoio à Prop 22 foi feita para usuários, dentro do app da Uber, dizendo que o preço da viagem poderia aumentar de 25% até 100% com a medida, como é lembrado no State of UX 2021, uma retrospectiva publicada pela comunidade UX Collective desde 2016.
Como refletiu a publicação, fazendo pensar sobre o papel de designers, da ética e da influência em comportamentos por parte de empresas de tecnologia:
“Alguém escreveu um resumo sobre isso. Alguém projetou isso. Alguém programou isso. Alguém fez o controle de qualidade. Alguém decidiu lançar isso. E funcionou.” — State of UX 2021, tópico nº 24.
Havíamos perdido a ingenuidade e descoberto que a missão de mudar o mundo de muitas empresas estava em curso, mas não da forma como, talvez, imaginávamos.
Dark money
O que passou a ficar claro a partir destes casos? Que uma coisa é falarmos em design centrado no usuário a fim de atender necessidades ou desejos legítimos desses mesmos usuários. E que outra coisa bem diferente é usarmos o jargão para capturar dados comportamentais e psicológicos de usuários a fim de satisfazermos vontades do negócio, as quais, mesmo sem intenção, podem se voltar contra os próprios usuários, contra terceiros, contra a democracia, o sistema financeiro ou até o planeta.
Wendel lembra que, de fato, há empresas que usam as Ciências Comportamentais de forma transparente e voluntária para com seus usuários (embora, mesmo aqui, possa haver controvérsias: qual negócio não faria vista grossa a certas práticas e aturaria críticas e escrutínio para conseguir receita similar a de um Facebook?).
Ele cita como exemplos positivos aplicativos de meditação ou atividade física, por exemplo, que têm a intenção de incentivar hábitos saudáveis em usuários, e aplicativos em geral onde a intenção é limar fricções da jornada do usuário.
Há, porém, outro tipo de uso das Ciências Comportamentais: quando, nas palavras dele, “mudança de comportamento é ajudar a empresa a conseguir algo e o usuário não sabe ou não quer”.
“Pelo que tenho visto na indústria, esse é o tipo mais comum de todos, e é hora de chamar uma pá de pá. Nosso setor usa psicologia do consumidor, ciência comportamental e quaisquer outras técnicas possíveis para forçar as pessoas a fazerem coisas que elas não realizam totalmente e não gostariam de fazer se estivessem totalmente cientes.” — Stephen Wendel, em Designing for Behavior Change.
Esse “não gostariam de fazer se estivessem totalmente cientes” basicamente envolve gastar tempo ou dinheiro com o que não acrescenta benefícios.
Se fizermos uma análise em nossos hábitos no ambiente digital, é provável que percebamos como caímos facilmente, pelo menos uma ou algumas vezes na vida (senão recorrentemente), nessas pequenas ciladas comportamentais.
O que era para ser uma zapeada no Instagram, no Tiktok ou no WhatsApp torna-se um buraco negro que nos suga para mais rolagem de página, mais vídeos, aquela conversação em grupo com mil mensagens da noite anterior.
No caso do dinheiro, é a assinatura que acreditamos ter feito para um único mês, quando, por padrão, foi cobrada para 12 meses, com uma dificuldade para solicitar estorno. A compra em que o preço em destaque é um, mas, quando finalizada, acrescenta impostos, frete e taxas por estarmos pagando no crédito e não no boleto bancário (para piorar, a última opção da lista).
O aplicativo que permite assinar ou se cadastrar com facilidade, mas exige ligar a um call center que nunca atende para cancelamentos. A notificação que informa um ótimo desconto, o qual, você descobre depois, em letras miúdas, só vale até um certo limite, muito inferior ao valor total da compra.
O próprio Eyal, após o Hooked, aproveitou o movimento de “fisgar” e “viciar” usuários que ele havia ajudado a construir, para escrever outro livro, Indistractable: How to Control Your Attention and Choose Your Life, orientando sobre como não ceder às tentações da vida digital (poderíamos dizer, brincando com outro livro citado no artigo anterior: para não cair nos sete pecados capitais de Evil by Design).
Os exemplos, novamente, alongariam demais o texto e muitos leitores provavelmente conhecem ou vivenciaram pegadinhas como essas, que costumam minar nossa relação comMarketing e Vendas há tempos.
De outra ótica, podemos até perguntar se isto continuaria a ser um problema de Design ou deMarketing. A questão é que, principalmente no ambiente online, é ainda mais difícil dissociar as duas áreas. Por força da necessidade de gerar receita, também, dificilmente seria vantajoso, ao negócio, mantê-los em silos.
Dark patterns
A relação entre Design e Marketing e a questão das Ciências Comportamentais serem aplicadas para extrair mais e mais receita de usuários nos leva a um movimento que começou há uma década e que tem se encarregado de expor essas pegadinhas e cobrar uma postura mais ética em UX.
O movimento chama-se dark patterns (padrões sombrios) e foi criado por Harry Brignull em 2010. O nome fez sucesso e virou meio que um marco para descrever experiências que, na visão do criador, enganam usuários.
O movimento chegou a ter um site (www.darkpatterns.org), que depois parou de ser atualizado por Brignull, e conta com um Twitter atualizado até hoje por usuários, com exemplos do que seriam más práticas de design.
Mais recentemente, outro site (darkpatterns.uxp2.com) passou a reunir material atualizado sobre o assunto. O site reúne padrões sombrios detectados por pesquisadores ao longo do tempo. Cada padrão leva nomes de identificação, tais como:
Privacy Zuckering, que faz referência a Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, e ao fato de o usuário entregar mais dados do que foi solicitado;
Roach Motel, algo (uma conta ou assinatura, por exemplo) em que é fácil entrar e impossível sair; e
Sneak into Basket, para quando um site coloca um item a mais no carrinho de compras sem autorização do usuário.
Para cada padrão, também há exemplos de sites e aplicativos em que eles foram mapeados.
Os artigos que Brignull hospeda no antigo site do tema são leituras valiosas sobre outros exemplos, práticas, estudos e entrevistas relacionados a dark patterns. Além disso, há uma tonelada de material em comunidades de UX que tratam de dark patterns. O vídeo How Dark Patterns Trick You Online, que ilustra a capa do www.darkpatterns.org, contém um bom exemplo introdutório.
Dark nudge e sludge
Dark patterns são bem específicos para UI e UX Design, mas remetem a outro conceito que serve melhor a estratégias, políticas e ambientes além do digital: dark nudge (cutucada sombria) e sludge (lama, lodo, imundície), que deriva do conceito de outro livro do artigo anterior, Nudge: Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness, de Richard Thaler e Cass Sunstein.
Em artigo intitulado “Nudge, not sludge” na Science, em 2018, dez anos após lançar Nudge, Thaler diz que a arquitetura de escolha proposta por eles ajudou pessoas a tomar melhores decisões, sem limitá-las em nenhuma opção, mas reconhece que o nudge pode ser usado para o “mal”, o que chamou de sludge.
Ele cita como exemplos oferecer descontos a clientes a partir de vendas, mas dificultar o resgate desses mesmos descontos, de modo que consumidores comprem mais, mas nunca utilizem o benefício que os levou às compras. O setor público, onde houve empolgação com as cutucadas, também não escapa ileso.
“[...] sludge pode assumir duas formas. Pode desencorajar o comportamento que é do melhor interesse de uma pessoa, como solicitar um desconto ou crédito fiscal, e pode encorajar um comportamento autodestrutivo, como investir em um negócio que é bom demais para ser verdade.” — Richard Thaler, em “Nudge, not sludge”.
Sunstein, em um paper, diz que a redução do sludge traz benefícios a usuários mais racionais (ele trata do sistema público), mas também pode significar uma barreira protetiva, na forma de papelada, regras e filtros, para regular o acesso a benefícios a quem realmente precisa. Afinal, a falta de filtros permitiria que qualquer pessoa acessasse benefícios que deveriam ir para os mais necessitados.
A euforia inicial com as cutucadas, que levou governos dos EUA e da Europa a implementarem nudges em políticas públicas, despertou também uma legião de estudiosos do tema e, obviamente, de críticos e opositores.
O livro Dark Side Of The Nudges, por exemplo, ataca o que considera um reducionismo da política econômica e social a um certo individualismo metodológico propagado pela Teoria Nudge, quando questões sociais, econômicas e ambientes requerem muito mais do que pensar em pequenos comportamentos (ou desvio comportamentais) de indivíduos.
Há estudos que mostram o uso do nudge, na forma de dark nudge, em jogos de azar, principalmente online, que seriam capazes de criar vícios comportamentais — uma demonstração de que cutucadas podem ser aproveitadas sorrateiramente para prejudicar indivíduos e não lhes possibilitar melhores escolhas.
A venda e consumo de bebidas também já foi estudada do ponto de vista do nudge, e de como o dark nudge e sludge pode levar a indicadores prejudiciais entre consumidores.
Não é pegação de pé com a Uber, mas outro exemplo de dark nudges são os relatos de como a empresa de transporte usou economia comportamental para que motoristas fizessem mais corridas, o que gerou críticas e polêmicas.
Como dito na primeira seção do texto, nudge (e hoje dark nudge já se mescla com dark patterns) é um campo farto para debates em torno de ética, limites, nuances, certo e errado, perigos, desconhecidos e discussões movidas desde a mídia e a academia até parlamentos.
Não é difícil reconhecer, em nós mesmos, na mídia e nos estudos, uma preocupação em tudo o que diz respeito ao que pode utilizar, interferir ou modificar comportamentos.
Isso se justifica porque desconhecemos consequências das técnicas a longo prazo, porque queremos resguardar nossa privacidade e por que, onde o Iluminismo e o Liberalismo compõe a ideologia dominante (boa parte dos países, principalmente no Ocidente), temos na noção de indivíduo algo tão sagrado, imperscrutável e inviolável quanto uma religião.
Propostas
Há bastante o que pensarmos a partir do artigo. Obviamente, ele não deve cobrir nem a décima parte do que se tem discutido a respeito de dilemas em Design Comportamental. Aprofundamentos conceituais ou em referências, de qualquer modo, também podem nos levar a tocas do coelho formidáveis.
Em um grande resumo, vimos como é difícil definir manipulação comportamental, que nem mesmo temos marcos sobre vício ou prejuízos em relação à tecnologia, como o campo depende de estudos e de política para saber aonde estamos indo, além de fazermos um apanhado do que já temos e como chegamos até aqui, onde o uso do Design Comportamental para alavancar objetivos de negócios, mesmo que de forma prejudicial a usuários, é o ponto nevrálgico.
Isto prepara terreno para o terceiro artigo da série, em que abordaremos propostas para um Design Comportamental ético.
Para algumas referências rápidas, toda a discussão filosófica de manipulação pode ser aprofundada na entrada The Ethics of Manipulation, da Stanford Encyclopedia of Philosophy. A subseção “vício” partiu de artigos da Psychology Today, que tem referências interessantes sobre estudos de vícios comportamentais, dopamina e uma série de outras questões da bioquímica cerebral e psicológicas.
Sobre a segunda seção do texto, os livros citados no artigo anterior são ótimos pontos de partida para se pensar em dilemas e conhecer alguns deles, como é o caso de Designing for Behavior Change, citado algumas vezes. O capítulo 4, “Ethics of Behavioral Science”, está disponível gratuitamente online, para leitura.
O histórico de polêmicas em torno de estudos comportamentais, vazamentos de dados, privacidade e questões relacionadas é amplamente encontrado na mídia generalista ou especializada.
O movimento dark nudge tem muito material na web, atualmente, e buscas sobre nudge, dark nudge e sludge levam a discussões e polêmicas em torno desses conceitos, principalmente da ética de se aplicar o nudge em políticas públicas.
Algumas reflexões que podem ter parecido sem saídas aqui, provavelmente ganharão alternativas no próximo e último artigo da série. Até lá!
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.
O conteúdo proposto faz pensar que as manobras que são exercidas ao grupo alvo e desenvolvedor tem sim sua importância para o crescimento e visão para onde estamos indo. Matéria sensacional absorvida
Queria parabenizar o Time Awari e o Rogério por esse texto sensacional e essencial, estarei acompanhando a série.