A linha tênue (ou cabo de guerra) entre o novo e o familiar
Um desafio e trunfo em Design e Gestão de Produtos é conciliar nossa ânsia, como usuários, por novidade (que pode se tornar confusão) e nossa busca pelo familiar (que pode levar ao tédio).
Em As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, seu livro mais famoso, especificamente no conto “As cidades e o desejo 3”, Marco Polo assim descreve a Kublai Khan uma das fabulosas cidades do império mongol:
“Há duas maneiras de alcançar Despina: de navio ou de camelo [...]”
“O cameleiro [...] imagina um navio; sabe que é uma cidade, mas a imagina como uma embarcação que pode afastá-lo do deserto, um veleiro que esteja para zarpar, com o vento que enche suas velas ainda não completamente soltas [...] e imagina todos os portos, as mercadorias ultramarinas que os guindastes descarregam no cais, as tabernas em que tripulações [...] quebram garrafas na cabeça umas das outras, as janelas iluminadas, cada uma com uma mulher que se penteia [...].”
“[...] o marinheiro [...] a imagina como um camelo de cuja albarda pendem odres e alforges de fruta cristalizada, vinho de tâmaras, folhas de tabaco, e vê-se ao comando de uma longa caravana que o afasta do deserto do mar rumo a um oásis de água doce à sombra cerrada das palmeiras [...] onde as bailarinas dançam descalças e movem os braços para dentro e para fora do céu.”
Despina1 é a “cidade-metáfora” para dois dos mais humanos — e conflituosos — desejos. Nossa ânsia por novidade, que no extremo é confusão, simbolizada pelo zarpar ao mar, atirar-se ao risco e ao desconhecido. E a paz que encontramos no que nos é familiar, que no limite é tédio, representada pelo “oásis de água doce à sombra cerrada de palmeiras”, imagem perfeita do conforto e da segurança.
A psicologia estuda essa relação porque é um mecanismo essencial à nossa sobrevivência ou, mais especificamente, a um dos aspectos mais interessantes dela: o aprendizado.
O marketing2 se aprofundou nessa aparente dicotomia porque ambos os desejos —por novidade e por familiaridade — estão onipresentes em nossos atos de consumo de produtos, serviços e ideias. O design, principalmente o design de produtos físicos3, deparou-se com a mesma curiosidade intrigante, seja no desenho de eletrodomésticos ou de automóveis, na concepção de embalagens ou dos aparelhos de rádio de Dieter Rams. Até o turismo4 — onde a novidade parece ser a busca suprema — já foi encarado dessa perspectiva.
Com o advento dos produtos digitais, essa linha tênue (ora cabo de guerra) entre novidade e familiaridade é um desafio para product designers (ou UX designers) e para product managers, embora nem sempre nos demos conta de sua importância. Também é um trunfo, um diferencial, se bem entendida e explorada no discovery (descoberta) e bem aplicada no delivery (desenvolvimento) de tais produtos.
Limites: a confusão e o tédio
Em um mundo conectado, de abundância de informação, mergulhado em telas, globalizado, falando quase a mesma língua (sempre é bom lembrar que há pessoas fora da bolha, vivendo como na Revolução Industrial, na Idade Média ou até no Neolítico), pode parecer que novidade é muito mais “interessante” que familiaridade. Ou que desejamos a primeira a todos custo a ponto de já termos esquecido da segunda.
O fato é: nosso cérebro não recebe upgrade já lá se vão alguns milênios e familiaridade é considerada muito mais “desejada” do que novidade. É instintivo. Principalmente porque temos um limite de atenção e de capacidade cognitiva para lidar com excesso de informações — e novidade significa mais informação para processar, até que ela se torne conhecida, ou seja, familiar, ou que a abandonemos por ser exigente demais.
Tratando esse circuito como um continuum, como algumas pesquisas em neuromarketing o encaram, podemos pensar que o vislumbre de qualquer novidade, ao primeiro contato, gera ou curiosidade (se positiva, atraente) ou temeridade (se ameaçadora). Estamos no reino da confusão, o primeiro limite dessa linha.
Passamos, então, a analisar a novidade na tentativa de decifrá-la, de conhecê-la. Se essa novidade demonstrar um custo-benefício atraente entre esforço de reconhecimento e recompensa emocional (prazer é um dos maiores deles — ou, quimicamente, descarga de dopamina), avançamos para simplificar o objeto da novidade até nos tornarmos confortáveis com ele, o que gera, obviamente, economia de energia cognitiva.
Do contrário, se o custo-benefício entre esforço de reconhecimento e recompensa não se mostrar atrativo (na grande maioria das vezes, calculamos isso instintivamente), a confusão prevalece e tendemos a largar o objeto. Considere-se objeto, aqui, tanto algo tangível quanto intangível.
O contato repetido com o objeto torna essa economia de energia cada vez mais eficiente, otimizada. Aí entra o outro limite do continuum: o perigo do tédio. A recompensa de dopamina sendo menor a cada repetição, tendemos a largar o objeto por nos cansarmos dele, por — pelo mínimo que seja — já não fornecer recompensa, mesmo que o esforço cognitivo exigido também seja bastante baixo.
Transfira-se essa relação para objetos físicos do dia-a-dia ou, no nosso caso em específico, para aplicativos em smartphones ou sistemas em desktops e fica fácil perceber esse risco entre a confusão e o tédio.
Encare rapidamente um aplicativo complexo para gerir seu orçamento ou um sistema para gestão de marketing ou de contas a pagar e é natural que, ao primeiro contato, seja necessário um esforço de aprendizado, já que a recompensa (dopamina) não é lá grande coisa. Um golpe a mais de complexidade e a confusão pode imperar e fazer o usuário fugir do produto, trocá-lo por outro ou, na obrigação de usá-lo (em um software empresarial, por exemplo), viver reclamando dos incômodos.
Em outro extremo, pense nos campeões de dopamina: redes sociais e games. O esforço de aprendizado dessas atividades traz alta recompensa. Você repete, repete e repete a dose. Mas se o conteúdo não se mostrar mais interessante (ou pelo menos interessante no mesmo nível) do que nas vezes anteriores ou se as fases do game não tiverem dificuldades e surpresas calculadas, o tédio estará sentado ao lado.
É interessante notar que aplicações lúdicas, que mexem com os mecanismos de recompensa — que você usa porque quer, não porque necessita — dependem de uma frequência elevada de novidade de situações, casada com alguma familiaridade de uso, para se manterem atraentes. Enquanto que aplicações mais utilitárias — que você usa mais porque necessita do que porque quer —, acabam ganhando o usuário por meio da familiaridade. (Veja-se processadores de texto ou planilhas eletrônicas, que, de tão usados, já nem parecem mais criações humanas, mas algo que sempre existiu)
Em produtos digitais, também é curioso notar que fluxo, sinalização e decoração — aspectos por excelência do design — lidam, cada um à sua maneira, com a novidade e o familiar. Enquanto fluxo parece algo em que a familiaridade tem de imperar (imagine o sentido do trânsito tendo mudado toda vez que você saísse de casa...), a decoração vem para dar vernizes de novidade ao produto, ao passo que sinalização parece ficar numa corda bamba entre os dois: requer familiaridade para não confundir, requer novidade para não passar despercebida com a frequência do uso.
Como em uma tábua reta na qual se tenta segurar uma bola de gude, é necessária alguma destreza e atenção constante para não deixar que ela penda para um lado (confusão) ou corra para o outro (tédio), o que requer algum talento de equilibrista por parte de product designers e product managers.
Meios-termos: o interesse e o conforto
Não há como fugir do equilíbrio, mas não um equilíbrio estático e, sim, dinâmico, e, às vezes, sutil, para não deixar usuários confusos nem entediados. Se a novidade traz consigo o risco da confusão, encontra no interesse a força que mantém a bola de gude sobre a tábua — usuários engajados em continuar descobrindo e explorando o produto. E se a familiaridade está a um passo do tédio, tem no conforto um porto seguro para que a bola de gude não caia para o outro lado da tábua — ou seja, usuários satisfeitos com as necessidades que o produto fornece, tendendo a retornar.
A linha é tênue e o jogo é exigente, por isso instigante: normalmente requer intercalar alguma dose moderada de novidade de tempos em tempos para que o produto continue “vivo”, mas necessita, também, dosar a mão para não sobrecarregar usuários que buscam resolver uma dor rapidamente, onde o familiar é indispensável. Até porque novidade demais pode criar aberrações como, imaginemos, Franksteins enrolados em luzes natalinas.
Obviamente, parece haver um claro marco divisório entre produtos “úteis” e produtos “lúdicos”. Nos primeiros, pense em um banco digital, em um software CRM ou ERP ou mesmo em um aplicativo de lista de tarefas. Nos segundos, pense em games e redes sociais, basicamente, mas talvez um produto voltado à educação (Duolingo, por exemplo) também seja o caso.
Naquilo que conceituamos como útil, o conforto parece primordial. O interesse tem de ser despertado, talvez, na fase de onboarding5 do usuário, ou quando ele se depara com uma nova feature, ou quando ameaça abandonar ou já saiu do produto. É nesse imperativo por conforto que o boring design parece encaixar bem.
Já no que vem para ser lúdico, tirando a necessidade de algum conforto com controles de tela (em uma rede social, por exemplo) ou de manejo de personagens, objetos ou cenário (em um game), o interesse tem que ser renovado constantemente. Apps de conteúdo dependem de interesse, em geral (e mesmo assim podem se tornar entediantes, caso ofereçam conteúdo pouco atraente ou repetitivo). O usuário anseia pela nova foto na rolagem infinita, pela nova história que surge imediatamente nos stories, pelo novo mistério da fase 42 do jogo preferido ou pelo problema desafiador de um puzzle qualquer.
Misturar as duas coisas pode ser interessante, mas nem sempre é garantia de adesão de usuários. Gamification, por exemplo. Pode ser interessante para um sistema de e-learning que trate de um assunto difícil de aprender. Pode ser um tiro no pé para um app cujo objetivo é uma consulta rápida, o registro de uma informação qualquer, como uma lista de tarefas ou um calendário — o foco, aqui, não é dispender tempo com o produto, mas sim resolver o problema e cair fora o mais rápido possível (o melhor dos mundos seria não ter compromissos e, evidentemente, não precisar de listas de tarefas nem de calendários para administrá-los).
Testes, muitos testes, e nada de ciência dedutiva
Manter o equilíbrio dinâmico citado requer bastante empirismo: abandonar conclusões pré-concebidas (suposições de que usuários preferem alguma coisa em detrimento de outra) ou derivadas de casos anteriores e medir, se possível em tempo real, como as preferências se manifestam a cada momento, para então ir dosando novidade e familiaridade à medida que o produto “vive” sua melhoria contínua.
Testes A/B, por exemplo, são uma das ferramentas mais conhecidas e utilizadas para isso. De forma bem resumida, consistem em entregar uma ou mais versões diferentes do produto (como um todo ou de uma ou de algumas de suas features) para uma amostra estatisticamente representativa de usuários, medindo-se quais das versões têm maior preferência, por meio, por exemplo, de uma taxa de conversão almejada.
Na prática, obviamente, é mais complexo, porque requer um cuidado estatístico para que se evite erros nas conclusões, cuidado esse que requererá ajuda de um cientista de dados. Também é uma ferramenta que depende de uma boa dose de “percepção”, “intuição” ou “criatividade” do designer ou do product manager (ou de ambos) na hora de formular hipóteses e os analisar os resultados obtidos, o que, por si só, já é tema para outra boa história.
O importante a product designers e a product managers é essa capacidade de se orientar por dados e o feeling de saber quando é a hora certa de dosar mais novidade ou mais familiaridade nos produtos em que estão trabalhando. Ajustes finos em um fluxo, visando aparar arestas e deixá-lo mais familiar, portanto mais confortável, podem ser não só uma facilidade objetiva, mas um motivo de satisfação emocional aos usuários. Por outro lado, novidades bem dosadas podem realmente destacar informações importantes em meio à abundância, mantendo usuários ativos e engajados no produto.
Voltando à prosa poética lá do início do texto, talvez um produto excelente seja um pouco como Despina, a cidade onírica narrada por Marco Polo a Kublai Khan: “um veleiro que esteja a zarpar” aos que procuram novidade ou querem fugir do tédio, um “oásis de água doce à sombra de cerradas palmeiras” aos que procuram familiaridade ou e não querem confusão. Ou, como resumiria o personagem genovês na prosa de Calvino:
“Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe; é assim que o cameleiro e o marinheiro vêem Despina, cidade de confim entre dois desertos.”
Os “desertos” não são difíceis de perceber: confusão, na forma de um produto que quer destacar tudo, cujo fluxo muda frequentemente, que exige alto custo cognitivo em troca de pouca satisfação a necessidades ou desejos; ou tédio, na forma de um produto defasado, que ficou para trás, fora da moda, seja em estética ou, ainda pior, em utilidade e proposta de valor. Ou seja, nem tanto à vastidão de mares revoltos da novidade, nem tanto ao ermo das areias inertes da familiaridade, mas um bocado de empirismo (e um dose de sutileza) para transitar com sabedoria entre os dois.
Artigo escrito por Rogério Kreidlow, jornalista, que gosta de observar a tecnologia em relação a temas amplos, como política, economia, história e filosofia.
Conferir Novelty vs. Familiarity: Where Is Your Marketing Sweet Spot?, de Steve Genco.
Conferir Effects of Novelty and Its Dimensions on Aesthetic Preference in Product Design, de Wei-Ken Hung e Lin-Lin Chen.
Conferir The Relationships among Tourist Novelty, Familiarity, Satisfaction, and Destination Loyalty: Beyond the Novelty-familiarity Continuum, de Masaki Toyama e Yuichi Yamada.
Primeiro acesso de um usuário a um produto de software, no qual o objetivo é fazer com que ele resolva rapidamente (e sem grande custo cognitivo) uma dor ou desejo, fazendo com que queira permanecer ou retornar, engajar-se no mesmo e, é claro, pagar pelo produto.